Fantástica Gramática Automática
Monday, November 28, 2005
  Boletim Meteorológico do Amor
(No pau de chuva e no caleidoscópio solar a inigualável Joanna Newsom.)

As nuvens fecharam-se sobre o sol ainda o dia não tinha chegado à sua metade. Nasceu o sol sobre o rio, nasceu brilhante na manhã de Outono-quase-Inverno contrastando com o frio que pairava no ar. Viam-se os miúdos a ir para a escola a expirar o frio pelas suas bocas como se de fumo dos primeiros cigarros se tratasse.
Na paragem do autocarro, grupos de meninas a fazer vezes de mulheres comentavam os rapazes que passavam, olhando-os de alto a baixo, avaliando-os pelo seu desempenho no campo de futebol ou em jogos de força ou coragem. Eles passam como um desfile e elas ficam a olhar, a escolher, a combinar, tudo verbos no infinitivo, sem uma condição definida.

No metro um casal olha-se, não se beija. Olha-se. Naqueles segundos em que se olham, naquele momento acabaram de dizer um ao outro o quanto gostam um do outro. Naquele momento deixaram de ser ele e ela para passaram a ser eles. Quase chegam a perder a identidade naquele jogo de transmutação corpórea que acontece; ele passa pelo corpo dela e ela passa pelo corpo dele. Deixam de ser verbos, deixam de ser a terceira pessoa do singular, individuais, para passar a ser a terceira pessoa do plural, unos. Para eles, que suspenderam o mundo naquele olhar, que puseram tudo o que estava à volta num plano tão infinitesimalmente inferior, aquele olhar foi uma promessa de amor.
E à medida que o metro vai abrandando, chegando a uma qualquer estação terminal – tem mesmo que ser uma estação terminal – aproximam-se um do outro deixando o corpo ao sabor da travagem que vai acontecendo lentamente. E quando o metro finalmente pára os seus lábios já estão colados uns nos outros e fundem-se. As pessoas saem todas das carruagens e eles, eles, continuam lá, continuam no olhar que se transformou em beijo mas que ainda é um olhar, para dentro, com o sabor.

O sol que nasceu brilhante, algures no metro, desapareceu, dando lugar a nuvens carregadas. As pessoas correm nas ruas como se se desviassem dos pingos grossos, ziguezagueiam aleatoriamente fugindo como se de lanças se tratassem, ou estilhaços de granada, ou castigo divinal e divino.
E no meio de um parque, a descoberto, sentados num banco de pedra, um casal beija-se. Não sentem a chuva, não sentem o frio. Sentem-se. O seu beijo ultrapassa qualquer chuva, ultrapassa qualquer frio. Já é de noite e Outono e eles namoram-se e partilham-se, não importa a hora nem a chuva. Ela no colo dele, ele com as mãos enlaçadas na sua cintura.

«Durante o dia fez sol e chuva, por esta ordem. Durante o dia fez-se amor e desamor, sem ordem aparente.»
 
Saturday, November 26, 2005
  Ouço os carros a passar
Ouço os carros a passar lá em baixo, numa rua. Os carros passam e não sabem que algures, um andar acima deles, a uns míseros dois metros e pouco, alguém dedica muitos pensamentos a eles, que pretendem chegar a algum sítio, ou que pelo devaneio do momento guiam a olhar em frente, mas sem ver o que se lhes atravessa, sem reparar nos pequenos pormenores que enchem as cidades de sentimentos bons.

Quando era pequeno, lembro-me de ter oito ou nove anos, ia de carro com os meus pais. Não gostava particularmente de dormir, gostava de olhar pela janela, de perguntar sobre os sítios, os lugares, as pessoas, as fontes e os fontanários.
Uma vez ia em silêncio. Passámos num semáforo verde e estava um carro branco parado, com um senhor de bigode ao volante. Fiquei a olhar para ele, mesmo depois de termos por ele passado. Sentei e fechei os olhos, concentrei-me com força nos meus pensamentos: pensei no que ele estaria a pensar quando viu o carro cinzento dos meus pais passar. E se cada vez que isso acontecesse uma pessoa pensasse nos pensamentos de outra pessoa? Estávamos todos ligados numa imensa telepatia. Olhei para o céu e vi o risco de um avião. Pensei nos pensamentos dos passageiros.

Hoje aconteceu-me o mesmo, quando ouvi um carro passar na rua, sem saber se o condutor tinha bigode ou não, se era um carro branco ou não. Foi um barulho que ouvi, um pensamento que passei para a escrita.
 
Wednesday, November 23, 2005
  Chá de limão aldrabado
Quando a chaleira começou a apitar, mentira, foi quando a luz se desligou da kettle que soube que podia deitar a água a ferver para dentro da caneca onde tinha a infusão. Disse chaleira porque ainda me lembro de a ouvir apitar em casa dos meus avós, nos jantares de Domingo, onde se comiam torradas com chá de tília. O chá que bebo é um chá de limão aldrabado porque já não tenho vizinhos a quem roubar limões às tantas da manhã e deixá-los espalhados na cozinha. O chá de limão é de uma infusão – olha, rimei – não é original como o bacalhau pascoal – olha, rimei outra vez!

Retomando:
foi quando a kettle desligou a luz e deitei o chá na caneca com a infusão de chá de limão que respirei fundo. Tinha algum tempo para poder escrever, tinha algum tempo para me sentar ao computador e sentir os dedos pulsar as teclas livremente, mesmo que isso significasse duas rimas alimentares e uma inútil discrição daquilo que estive a fazer antes de me sentar ao computador. E o que estive a fazer não difere muitos das outras noites, o que é realmente interessante é que hoje pude sentar-me a escrever, pude deixar que os dedos pulsassem as teclas ao sabor de pensamentos, ao sabor de um suspiro profundo que soltei quando me senti em paz porque olhei para única fotografia que tenho na minha secretária, entre postais de pinturas da Frida Kahlo e de Geishas japonesas.

Mas calma:
antes de chegar ao suspiro. Desliguei as luzes das divisões que atravessava até chegar ao meu quarto que, tão rara é a vez que isto acontece, estava em silêncio. Não queria outra companhia senão os meus pensamentos e o suspiro e toda esta atmosfera de um sítio que construí. Senti que me misturava com as paredes, com os móveis, com a cadeira em que agora me sento, com os discos e filmes nas prateleiras, com os livros que mais gosto – que não pouca vezes fogem de um quarto para o outro da casa – com os frutos secos que comprei para ver o «Paris, Texas» antes de dormir; misturo-mo no meio disto tudo, diluo-me nas coisas que me fazem e me constroem. Até na infusão de chá de limão.

Fim:
e na paz da noite, de um suspiro de felicidade trazido de longe, de um chá que arrefece rapidamente. Hesito, ligo as «Copas» para um só jogo antes do final. Esperem. […] Desisti a meio, ansiava por este final. Porque tem que ser um final fantástico, um final com uma rima que não inclua nem chá, nem bacalhau. Tem que ser um fim assim:
sentei-me em frente ao computador, nem pensava no que escrevia, era tudo tão fluido como se estivesse destinado a ser assim desde sempre, sentar-me ao computador, ou em frente a uma folha de papel e escrever. E desistir nunca, hesitar, vá lá, mas tudo se resolve com uma xícara de chá.

(E o que escrevi é assim: «Quando a chaleira começou a apitar […] vá lá, mas tudo se resolve com uma xícara de chá.»)
 
Sunday, November 20, 2005
  Folhas
Há pouco tempo atrás estava muito vento. Da janela via a chuva que caia com força, o vento que abanava as árvores, como se as quisesse acordar de um longo sono, de um sono pesado. Caíam folhas, enchiam os passeios, os carros, os largos de um desespero vazio e domingueiro
O velho varria o passeio em frente à sua moradia; estava vestido com um fato completo, um fato castanho de Domingo. Numa figura relativamente alta, mexe-se ao sabor da vassoura e das folhas e do vento, mexe-se combatendo a idade, não querendo ver a inutilidade dos seus movimentos. Num fato formal varre as folhas em frente à sua moradia. E mal vira costas, as folhas voltam a cair no sitio de onde ele as tinha varrido, qual criança travessa que deita a língua de fora depois de lhe terem ralhado. Volta-se para trás e vê o seu trabalho destruído por mais uma nortada. Olha as árvores, olha o passeio. Retoma os movimentos dentro do fato castanho formal, varre as folhas de um lado para o outro, mantendo a sua parte do passeio limpo. O vento é violento agora e desafia-o, revolta-lhe os ralos cabelos. A porta de casa abre e uma senhora toca-lhe num gesto de chamada. Com brusquidão vira-lhe as costas e retoma o trabalho com uma energia trémula, uma energia fugaz. Já tem as faces coradas e o seu respirar ofegante sopra mais forte que o vento. Num momento desequilibra-se e parece que vai cair, mas encosta-se ao murete. Deixa cair a vassoura e volta para casa.

A chuva bate com força nas janelas, abafa os outros ruídos. O chuva cai por toda a cidade e encontra-a vazia de pessoas, encontra-a sem ninguém; encontra nas ruas um reflexo cinzento do alcatrão e calçada das ruas, um céu pesado que parece querer cair a cada momento. Há no ar um peso opressivo, um ar de metais pesados que entra dentro dos pulmões, que nos esmaga por dentro, que nos toldas a vista e o pensamento, que embebe os pensamentos.
A casa está quente. Abro a janela, debruço-me o mais que posso, até me encontrar num ponte de equilíbrio precário. Sinto a chuva e o vento a baterem-me na cara, sabe bem o fresco, sabe bem a violência da rua. Recolho-me para dentro, olho a rua e o velho que voltou a varrer as folhas.
 
Thursday, November 17, 2005
  Noite de dia e de noite
Chega o fim da tarde, a quase noite e a cidade torna-se laranja; porque o céu cinzento e nebulado transforma-se num céu reflector quando as luzes se ligam. Podia ser um céu de prata opressiva, mas suponho que as coisas também são aquilo que nós queremos que elas sejam. Daí que o céu podia vermelhar com o sol quente de Verão, podia acinzentar como hoje, que eu continuaria a sentir o mesmo.
Respiro com força o ar fresco deste fim da tarde que já se começa a confundir com o início de noite, uma espécie de hora das novenas. Sei que algures, nos confins do meu bairro, ainda há hora de rezar o terço, as horas mortas dedicadas aos rituais litúrgicos individuais. Uma espécie de conforto quente que entra dentro do coração das pessoas. Suponho que uma grande cidade seja apenas o aglomerar de pequenas cidades das quais não há uma fronteira definida. Podemos escolher um anonimato de uma grande cidade para depois compreender que continua a existir uma pequena mercearia onde podemos fazer compras às oito da noite, onde há pessoas que nos reconhecem e pelo simples facto de sermos reconhecidos, deixámos de ser anónimos.
Nas diferentes cidades de cidade onde escolhemos viver, somos anónimos, sim; mas há um local onde somos reconhecidos, onde, quer queiramos quer não, as pessoas esperam um padrão comportamental da nossa parte, mesmo que seja um padrão não muito bom.

Gosto das casas que circulam o meu prédio, como uma emboscada a um enorme paquiderme. No meio de vivendas ergue-se um prédio de cinco andares. Abro a janela e vejo vivendas, vejo pessoas a passear o cão, vejo pequenas hortas citadinas; vejo o rio, um pouco mais ao longe, tão cinzento, como um corredor de cimento que divide duas margens, como um nevoeiro intenso de mistificação e oclusão.

Olho o meu prédio; há muito que não o vejo luz natural. Saio de casa ao primeiro azular e quando regresso há muito que a negritude espacial, estrelar, desceu sobre as suas paredes. Entro em casa, no silêncio das respirações regulares que ecoam nos outros quartos.
Ouvir pessoas a dormir é como guiar de noite, há dentar de nós um instinto protector, algo que nos leva a sentir que outros estarão debaixo da nossa alçada, nem que seja por ouvirmos o seu sono, nem que seja por, num imaginário romântico e romanesco, sintamos que, por estar acordados, estamos menos vulneráveis.
E na enorme cama que se apresenta, deixo-me cair.
 
Monday, November 14, 2005
  Sem título #2
Quis começar a escrever uma carta para muito longe, para mais de quatro mil quilómetros de distância; não tenho a certeza se é assim tão longe, mas não interessa, estou longe. Quis começar a escrever a carta e não me ocorria forma de a escrever.
Os anos que foram passando e os empurrões da vida levaram-me a reprimir algumas formas de expressão dentro de mim. Olho para o papel em branco, ao lado do computador, com a esferográfica pousada em cima e sinto-me um traidor: há muito mais facilidade em escrever agora, do quando me sentei em frente à folha de papel branco com a esferográfica azul. Achei que fazendo primeiro a catarse deste bloqueio, conseguiria escrever uma carta verdadeiramente bonita.
Julguei ainda que pudesse ser da escrita à mão, e quando abri um novo documento no computador, as minhas mãos ficaram suspensas no ar, como se fios as não deixassem descer mais. Ficaram sobre o teclado, sem saber que teclas carregar primeiro, sem saber por onde começar.

Gostaria, nesta altura, de ter o virtuosismo do Pablo Neruda que toda a vida escreveu para a mesma mulher, que a ela dedicou os mais bonitos versos e, quem sabe, cartas repletas de sentimentos magníficos e exacerbantes, gloriosos. E mais do que tudo, sentidos.
Não me sinto vazio de sentimentos, muito pelo contrario, sinto-me pleno. Mas algures por aí, mais ano, menos ano, bloqueei a minha capacidade de conseguir expressar aquilo que sinto. E nem isso é totalmente verdade, porque consigo até expressar, fazer a escolha das palavras mais bonitas. Mas quando termino, um rubor espalha-se pela minha cara, sinto-me votado ao ridículo de quem disse coisas em desuso, coisas que já não se dizem.
Por influência da leitura, vejo-me num romance ultrapassado do Júlio Dinis ou do Almeida Garret. As palavras começam a sair em catadupa e não há forma de as parar. A saudade, o recordar os tempos passados juntos, os dias mais especiais, os segredos murmurados, o primeiro beijo e os outros igualmente bons.

(E um dia disseram-me: “olha, as mulheres gostam de ouvir essas coisas, mesmo que digam que não.”) Lembrei-me disto agora.

Olho para o papel e já vejo as palavras que tenho que escrever, como se à partida já estivessem no papel.
“Esta carta custou a começar, mas já leva o caminho certo. Na verdade, às vezes sinto este género de bloqueios porque tenho que escrever sobre sentimentos, porque tenho que escrever sobre...”
 
Sunday, November 13, 2005
  A banda sonora da minha vida
Quando sai de casa começou a chover. Levava apenas uma casaco quente com uma camisola de manga curta por baixo. Não sei, goste de fazer estas coisas quando sei que não vou demorar muito tempo ao frio. As pingas grossas começaram a cair entre a porta do prédio e a porta do carro, nos dez metros que separavam uma porta da outra. Não corri, tinha tempo para chegar até ao carro antes que a chuva se tornasse constipadora.
E mal fechei a porta do carro, antes mesmo de começar a ouvir os sons do rádio, os pingos faziam o barulho que abafava tudo, o barulho dos pingos a cair no vidro, a cair no metal do carro. Deixei-me estar em silêncio. A chuva a cair é embaladora.

Gosto de me vestir todo, da cabeça aos pés com roupa quente e ir para a rua, ficar a sentir a chuva a cair em cima do guarda-chuva, a ouvir aquele barulho que impele aos pensamentos doces, com um sorriso de perfeita estupidez estampado na cara. Nessas alturas gostava de viver num local mais bonito, com mais água. Gosto de ver a água a cair na água, em lagos ou rios, ou mesmo no mar. Acho que dias assim têm um sabor especial. Mas também gosto de olhar a água misturada com as manchas de óleo dos carros, as manchas multicolores que ficam no alcatrão. É a mais perfeita gradação de cores, um arco-íris à distancia de uma chuvada e de carros velhos.

Andei de carro pela cidade a ver as poucas pessoas que andavam, de guarda-chuva em riste, cobertas de impermeáveis e chapéus, encolhidas de frio. O caminho que devia ser simples, levou a forma tortuosa de uma serpente pelas ruas estreitas e empedradas da cidade. Dupliquei, tripliquei o caminho que tinha que fazer. Para continuar a ouvir a chuva a cair sobre o carro. Quando cheguei aos destino, as gotas de chuvas estavam suspensas nas nuvens por inúmeros fios invisíveis; fios frágeis, que parecia que se podiam quebrar a qualquer momento, mas que naqueles segundos, aguentavam o peso gravítico das gotas.

Quando regressei ao carro, os fios tinham-se quebrado e todas as gotas que haviam estado suspensas, caiam em lágrimas pelo, chão, escorriam pelas goteiras, pelas telhas, pelos algerozes. A água acontecia em todo os lado, lágrimas que choravam todos os desgostos de um Domingo de manhã.
Nos filmes, quando acontece algo sem dialogo, a música enche o silêncio; às vezes. Corri para o carro e nesse momento o meu telemóvel começou a tocar, a tocar uma canção, a que uso como toque. Continuei a correr, sobre os pingos grossos.

Sentei-me no carro, tinha perdido a chamada. Fiquei a ouvir a chuva e a achar que aquele música tinha completado o marulhar da chuva. A banda sonora perfeita para uma manhã de Domingo chuvosa.

[‘Lonely As Can Be’, The Concretes – “The Concretes” (2004)]
 
Friday, November 11, 2005
  Algures em Lisboa há uma camisola azul perdida
Há dias que aprecem multiplicar-se em muitos mais e quando julgamos ter passado dois, três, quatro dias passou apenas um, como se as horas se tivessem multiplicado ou o tempo dividido diminuído ou abrandado. Tenho a noção que os últimos dias passaram por mim sem que eu tivesse conseguido assimilar aquilo que deles tinha que retirar, mas isso talvez tenha acontecido porque não tinha nada a retirar deles. Sei que era o meu corpo que me doía, sei porque ainda tenho as marcas marcadas a negro na pele, vergões escuros.
Quando terminou, o saldo era uma camisola azul perdida. Quando fiz questão em tê-la, estranharam-me porque era só uma camisola azul escura lisa. Disseram-me que eu lhe tinha amor, que era da sorte, disseram-me que me lembrava de ocasiões especiais. Disseram-me muitas coisas, muitos símbolos que a camisola tinha para mim. E não era nada disso, era só uma camisola confortável igual a muitas que tenho por casa. Não compreendi a necessidade de a tornarem tão importante. E quando tentei explicar que não era importante, perguntaram-me então porquê tamanha preocupação. Porque sim, porque não posso andar a comprar roupa sempre que alguém faz desaparecer uma camisola minha; o que mais me deixou danado é a falta de cuidado do que propriamente a baixa da camisola.
Ficaram com o meu número e prometeram ligar-me assim que a encontrassem, com a maior urgência, porque para eles a camisola para mim era-me muito querida, que era da sorte, disseram-me que me lembrava de ocasiões especiais. Disseram-me muitas coisas, muitos símbolos que a camisola tinha para mim. E no entanto não era nada dessas coisas. Já disse que foi a falta de cuidado que me deixou aborrecido?

Segunda-feira ligam-me.
Pois sim, até já.
 
Monday, November 07, 2005
  A casa da bruxa
A vizinha do segundo direito olha para o largo na esperança de saber o que nele se passa, para saber quais os carros que já saíram, para determinar quais as pessoas que ainda se encontram no prédio e quais as que já saíram. Os pretextos são sacudir a toalha da mesa, bater os tapetes, ou simplesmente estar a apanhar um pouco de ar fresco. De qualquer das formas, não perde pitada daquilo que se passa no largo. Um dia estica-se tanto, tanto, vem o Senhor C., o marido, por trás e pumba, empurra-a para baixo.
Até simpatizo com a D. C., é uma verdadeira matrona portuguesa, com direito a bigode e tudo. Era só disso que eu não gostava quando era mais novo: a minha mãe obrigava-me a ser simpático e tinha que lhe dar dois beijinhos. No fundo, eu era como todas as outras crianças, queria era brincar; mas como era tímido sorria e não tinha coragem de nenhum acto de rebeldia, dizendo que não dava beijinhos nenhuns. E acabava por sentir a roçar na minha cara, os pequenos pelos, quase invisíveis, mas ásperos.
No dia em que lhe ofereceram uma gata foi o delírio; suportava todos os beijos ásperos para poder brincar como o bichano, bichana, Tucha de nome. Era branca e não gostava muito de mim. Quando cresceu, ia para os nossos terraços e entupia o algeroz. Com bolas de pelo e bolas de merda. Durante muito tempo, a minha mãe e eu fizemos uma cabala, mil e tal formas de matar a gata, sem sermos notados. Um dia, sem nossa culpa, verdade, caiu do segundo andar, o segundo andar é alto, mas não morreu; gastou duas vidas, o segundo andar é mesmo alto, e nunca mais voltou aos terraços.

Nas noites de Verão costumávamo-nos juntar no largo dos meus avós; um largo grande, quase só com vivendas. As noites de Verão em grande grupo, quando ainda se jogava ao esconde, futebol, ou simplesmente se andava de bicicleta. Faziam-se enormes excursões aos grandes quintais das vivendas sessentistas. No canto do largo, a vivenda cor-de-rosa, um rosa escuro, avermelhado sanguíneo. A casa da bruxa, a casa do Sr. S. que nos roubava as bolas de futebol. Mas nem sempre o conseguia, uma ou outra vez, alguém, mais audaz, tinha coragem de entrar dentro do quintal e apanhar a bola. Que coroação de coragem e as histórias que contava: esqueletos, morcegos, caldeirões, homens dependurados, lobisomens e sarabandas. Ficávamos todos arrepiados com estas histórias de coragem, como se as aventuras do Indiana Jones estivessem à distância de uma vivenda.
Houve um grupo que ousou ir às traseiras; entraram pelo corredor da garagem, o largo ficou vazio. Cada um contava uma coisa que tinha visto, relatos arrepiantes de uma enorme aventura. Foi passada a noite, sentada no muro da D. A. a conversar sobre bruxas e fantasmas e caldeirões. No fundo, um salgueiro pode ser muitas coisas.
 
Sunday, November 06, 2005
  Walk
«Find myself singing the same songs everyday
Ones that make me feel good
When things behind the smiles ain’t ok

Around and over and in-between the seas
I need to be on top of a mountain
Where I can see everything
‘Cause this paranoia is getting old

And now as I open my eyes to start another day
I’m in a pile of puke
Empty bag of excuses
My love for friends and family
You know I need them

And under the sun that’s see it all before
My feet are so cold
And I can’t believe that I have to bang my
Head against this wall again
But the blows they have just a little more
Space in-between them

Gonna take a breath and try again»


Blind Melon, “Soup” (1995)
 
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
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