Fantástica Gramática Automática
Saturday, January 28, 2006
  Corrente de ar e lágrimas
Ontem fechei os olhos e eles continuavam deitar lágrimas. Hoje fechei os olhos e eles continuavam a deitar lágrimas. Porque o meu ontem já era hoje. Não sei porquê. Sei o ontem e o hoje mas não sei as lágrimas. Não as reprimir e deixei-me dormir com pequenos carreiros que desciam pela minha cara e faziam duas covas molhadas na almofada.
Não me sentia triste. Sentia-me bem e dormir bem. Mas as lágrimas caíram e de manhã tinha dois carreiros salinos, um de cada lado da cara. Adormeci coma sensação que algo dentro de mim acontecia e eu não conseguia ter uma noção exacta do que era, mas que acontecia, acontecia! Talvez tivesse sido uma descompressão qualquer, de uma coisa qualquer. Ou então foi o fumo da noite, do passeio no Bairro Alto. Ou então foi só uma desculpa para poder deitar cá para fora lágrimas que quase-transbordavam há muitos anos.

[Acordei e estiquei o braço até à entrada e trouxe o telefone. Marquei um número que já sei de cor há muito tempo e estive a conversar e diziam-me,
- Estás com uma voz de acordar.
E estava com uma voz de acordar, porque só tinha tido tempo para esticar o braço e marcar o número que já seu de cor.]

Neste preciso momento caíram inúmeras folhas do plátano em frente à minha casa. Foi o vento que as levou e as leva não sei para onde, mas sei que vão na direcção do rio. Na minha imaginação romântica, vejo um vento de Sábado com sentimentos de Domingo que levas as folhas do plátano até ao cemitério de S. João e cada uma delas repousa em inúmeras campas, já que são inúmeras folhas, como se fosse o vento do dia cinzento de todos os santos a entregar as suas saudades aos mortos. Porque o vento já cá estava e viu-os nascer e viu-os morrer e o vento viu isso tudo e o vento leva as folhas castanhas secas do plátano até ao cemitério como flores primaveris e frescas que quis deixar.
Mais uma rajada de vento e inúmeras folhas que voam para inúmeras campas no cemitério de Benfica.

Choraria eu pelos mortos em que penso hoje? Pelos mortos que nunca conheci mas que estão sempre tão presentes na minha cabeça, que me habitam?

Mas chorava pela felicidade, pela descompressão de tudo aquilo que expurgo, que sai de mim como a peste, como as bexigas negras invisíveis que me toldavam a visão. O muco que me empastava o cérebro, que me prendia os movimentos e a inércia que me prendia. Chorava, não por vê-los sair, mas sim por vê-los sair de mim, por me sentir liberto.
Abri a boca e enchi-a com uma golfada de ar. Aprecia que os meus pulmões conseguiam encontrar e arrumar todo o ar que a minha boca insistia em mastigar para depois engolir. E depois soprei.
E Lisboa encheu-se de vento.
 
Wednesday, January 25, 2006
  O Ladrão
A cabeça lateja-me de um dia demasiado longo, de uma semana que é demasiado longa e que só ainda vai a meio. Sinto que quanto mais me aproximo do final da semana – que só hoje ia a meio – mais ela se estende e distende: e depois voltamos a juntar todo para descobrir que se estende e distende para parecer que não mais tem fim.
Com o computador ligado, carregava no rato que me lava daqui, para ali, abrindo mais uma janela e mais uma janela e mais uma janela e mais uma janela. Não sei porque é que fazia isto. Sei que as coisas não acontecem de forma inocente e fui dar com um poema de um outro blogue:

bite me

maybe you don't know this, but:

i know you think that i'm a bad kisser.
and in a way i'm sort of relieved,
because i used to hate it when
you would slobber all over my mouth.

things probably would have been better
if we'd skipped the kissing entirely
and just kept our physical relationship
to biting, pulling hair, and you cumming on my belly.

[Levado emprestado sem permissão a Sadie.]


Acho-lhe alguma piada no meio de todo esta cansaço, nem sei bem porquê. Nem sei porque é que escrevo sobre isto se nos passados dias passei grandes pedaços a escrever nas mãos para me não esquecer das coisas que me iam acontecendo, ou que via, para poder escrever, para escrever a vida como ela é mesmo e não como eu a vejo, se é que isso é possível.
Mas das minhas mãos, nem sei como, desapareceram todos os rabiscos, desenhos e diagramas e acabei por ver só a minha pele, limpa, sem sinal de caneta preta ou azul. É triste, como o cansaço pode fazer desaparecer mil e uma ideias e fazer perecer o processo criativo de construção de palavras.

Fica o poema que hoje acho que fica bem comigo mas que amanhã estarei tentado a rasgar, a fazer desaparecer do ecrã, tentado a desligá-lo sempre que o leio ou releio. Mas não sei, apeteceu-me algo escatologicamente cru e nu, apeteceu-me despir o amor e mascarar o sexo.
 
Saturday, January 21, 2006
  Baús, Tesouros e Afins
“I am thinking of your voice”
Começa o final de uma canção sem música com este verso, justamente na altura em que as minhas mãos caem sobre o teclado. Porque, assim como as fotografias guardadas, já não há caneta ou pena que me valha, apenas os meus dedos que repousam sobre as teclas e constroem palavras, à vezes inventadas, outras vezes – a maioria – palavras que foram já inventadas há muito tempo. Mas gosto de inventar palavras, mesmo que depois mais ninguém as use, gosto de as inventar da mesma forma que gosto de escrever, porque uma coisa não existe sem a outra, são a mesma, una e indissociável.

Há uma expectativa gorada no ar, uma forma de excitação quase audível nos regressos a casa. Mas o que é casa? Já não é um regresso a casa, mas sim uma ida a casa dos pais, ver como está a cidade que nos acolheu, o berço gigante da existência individual. Acabo por regressar sempre a este tema quando venho ao Alentejo, porque fica profundamente marcado em mim, como uma cicatriz que ainda não fechou e que nós continuamos a abrir.
Mas regresso ao Alentejo com a expectativa gorada no ar. Regresso porque sou filho da terra. E filho da terra puta. Mas cresce a sensação de expectativa gorada porque os regressos são um acumular de sensações desencontradas com aquilo que esperávamos encontrar, as pessoas, as pessoas e as pessoas. Filho da terra entre duas serranias, num vale escondido. Regresso sempre pela porta do cavalo, pela porta pequena. E sinto a expectativa gorada a apropriar-se da minha pela porque me arrogo a querer entrar de cabeça erguida anunciando novas que ainda o não são. Entro calado e saio mudo, na esperança que me dirigissem a palavra.

Os baús estão vazios e tesouros os não há. Afins, são as coisas que sempre levamos, afins ou enfins, e um silêncio gigantesco e a promessa de não regressar tão cedo. Porque talvez, da próxima vez, as expectativas não sejam goradas.
Mas o ar tresanda, uma pestilência que se cola às narinas e ao longo de todo o sistema respiratório, dificultando a respiração, anunciando uma morte há já muito esperada; e não há Fénix que nos falha, morre-se para os outros assim e somos apenas para nós próprios. Isto a propósito de muita coisa e de nada.

[E sim, continuo a pensar na tua voz, nas formas que ela toma e ganha dentro dos meus ouvidos, espalhando felicidade pelas sinapses, abanando-me deste torpor, arrancado ao marasmo preguiçoso. Na tua voz sussurrada e nos beijos matinais, cheios da orvalha nocturna e do amor saciado e iminente, sempre, em desvarios.]


Verso retirado de “Tom’s Diner”, Suzanne Vega – Solitude Standing [1987]
 
Thursday, January 19, 2006
  Feliz é bom
Está frio e é de noite. Ou é de noite e está frio? Não sei saber qual deles é que veio primeiro, se o frio que entrou por dentro das camisolas ou a noite que há muito me ensombra os pensamentos e acções. Sei que é de noite e está frio e a rua mostra um alcatrão mais escuro, o escuro da água que caiu do céu mas já não cai. Está cada vez mais frio e uma mancha de gasolina mistura-se numa poça de água e transforma-se em muitas cores, em todas as cores.

De dentro de um restaurante sai um casal, vêem em silêncio, ele vem um pouco mais à frente que ela. São pessoas que se misturam no meio das outras pessoas, são aqueles a quem chamamos outros, que não sabemos distinguir dos demais. Não que não tenham a sua individualidade, mas porque como são eles também poderiam ter sido outros. Mas naquele momento, todos os outros são eles.
Ela lança os braços na cintura dele e dá-lhe um beijo no pescoço. E o casal sisudo, saído do restaurante, que podia ser qualquer outro mas é aquele ganha uma individualidade, ganha um sentido de vida e amor. Riem-se e ela morde-lhe uma orelha, continuam a rir-se em direcção ao carro; comunicam apenas com gestos e olhares, olhares de carinho e amor. Entram no carro,

(Há algo neste quadro que as palavras não conseguem captar, há um contexto frio de noite, de chuva e de ruas vazias e um casal, que não é outro, mas que só podia ser aquele, agora, vive uma paixão de adolescentes. Há alguém que os vê e apreende tudo, quase até o sabor do beijo que trocaram, o cheiro do perfume dela, as imperfeições da idade que se tornaram perfeitas. É tudo, tudo, tudo, tudo. Mas é deles, não meu, eu apenas vi. E registei, invejei.)

fecham as portas mas a luz lá dentro continua acesa, demora ainda algum tempo a apagar-se, nem se dão conta que alguém os observa, directamente, em frente, quase como um voyeur emocional que se apropria de tudo o que se passa à volta para seu próprio prazer. Nessa altura lançam-se nos lábios um do outro, sem querer saber se há alguma luz acesa. Lançam-se de boca semi-aberta, com a língua tocar a língua e com os cheiros a misturarem-se. A luz apaga-se e ele põe o carro a trabalhar. Liga as luzes que incidem em mim, com a violência de um palco, com uma exposição forçada que não queria. Ponho a mão à frente dos olhos, para me proteger da luz.
O carro arranca e pára num semáforo logo a seguir. Ela encosta a cabeça ao seu ombro. E vão assim, felizes.
Feliz é bom.
 
Monday, January 16, 2006
  Território Neutro, o Branco
No meio de uma estrada muito movimentada há um risco branco.
De relance, olho. Três raparigas, no mesmo momento, no mesmo preciso momento, infinitésimo de segundo e muitas mais fracções de segundo e de tempo, puxam uma baforada do cigarro, individual, que cada uma delas fuma. E nesse momento que congelei e que à luz da lentidão estou a descongelar, vejo que todas elas expeliram o fumo na mesma altura, no mesmo momento, no mesmo preciso momento, com todas as divisões e fracções miniaturas de tempo possíveis pela descrição descongelada do momento.
Faziam equilibrismo no meio de uma estrada com um risco branco, elas equilibravam-se em cima do risco branco. E o vento dos carros ou as equilibrava ou as desequilibrava. Mas elas permaneciam no meio, cada uma com seu cigarro imunes a tudo, como se a o risco branco em que se encontravam lhes servisse de protecção da violência que à volta delas acontecia, da velocidade da fúria e da raiva. E elas fumavam.

A rapariga da direita tinha o cabelo branco e era nova. A rapariga do meio tinha as unhas brancas e era nova. A rapariga da esquerda tinha um casaco de malha, branco, e um cachecol transparente que a noite não me deixou ver.
E todas tinhas um cigarro comprido, entre os dedos indicador e médio, que fumavam cadenciadamente, um cigarro branco e comprido que quase chegava ao chão. Esperavam para atravessar a estrada e expeliam baforadas de fumo., num equilíbrio em cima da linha, num coito de crianças que jogam à apanhada, num coito de carros que se atravessam à sua frente e atrás violentamente, furiosamente, com desejos escondidos de as esmagar. Mas em cima da linha branca – ao longo da qual caminharam já – estão seguras. E fumam os seus cigarros compridos.

O tempo que congelei, descongelou. E continuei o meu caminho, rápido como ia, sem conseguir olhar para trás, sem conseguir saber o que aconteceu à rapariga da direita que tinha o cabelo comprido e era nova, à rapariga do meio que tinha as unhas brancas e era nova e às rapariga da esquerda que tinha vestido um casaco de malha, branco, e um cachecol transparente que a noite não me deixou ver.

A tarde transformou-se em noite e as mulheres brancas ficaram na linha branca, no seu coito, no seu lugar seguro, à espera que os cigarros terminassem e que os carros passassem, para poderem passar. A da esquerda, a do meio e a da direita. Todas novas e todas brancas, de branco. Porque eram uma unidade tripartida e um triângulo unitário. E eram três e eram uma.
E expeliram o fumo ao mesmo tempo. Dos cigarros compridos, brancos. Com uma incandescência azul.
 
Saturday, January 14, 2006
  “Flores Partidas e Vasos Inteiros”
Há neste título um encanto poético que não consigo descortinar. Deixo-o assim, porque mais não consigo escrever sobre ele. Fica como uma entidade separada do texto, porque tem uma carga tão ou maior do que aquilo que vou escrever e ainda não escrevi. Ficam dois textos: título e texto, no mesmo contexto.


Estive a olhar para fotografias, aliás, estive a ver fotografias. Começo a pensar que todas as minhas acções perdem o encanto romântico que eu lhe confiro. Ver fotografias já não é abrir uma caixa de madeira ou de metal, antiga caixa de bolos, e ver fotografias amareladas e desbotadas, a sépia ou a preto e branco. Ver fotografias implica abrir uma pasta no computador e estar a ver num ecrã. E o cheiro do papel? O toque, e as dedadas no canto?

Todo esse encanto romântico perde-se num ecrã de computador ou no ecrã do telemóvel. Dei por mim a mostrar uma fotografia que tinha tirado com o telemóvel: na rua, as pessoas olhavam para a situação, como quem repara na senhora que levanta dinheiro num ATM. Senti-me envergonhado por fazer parte de uma geração em que partilha as fotografias em telemóveis, em que as envia e reenvia com a maior promiscuidade. Mas porque é que havia de sentir envergonhado? Porque é que me havia de sentir rebaixado por estar a mostrar algo a alguém. Talvez tenha sido por não o fazer da forma que considerava mais romântica, não tinha oferecido um lanche nem aberto uma secreta caixa de bolachas ou bombons de lilás com fotografias amarelecidas cheias de segredos. Não, abri um pasta no telemóvel uma pasta que nem sequer existe e senti-me desesperadamente constrangido.

Lembro-me de ter dezoito anos e estar a ouvir música num leitor portátil: estava na escola secundária. Nas mãos tinha o telemóvel e estava a jogar um qualquer jogo. E pessoas passavam por mim e falavam-me e eu não percebi nada. E estava tão alheado no jogo e na música. Fizeram-me um olhar de reprovação que nunca mais esqueci e desejei pertencer a uma geração que não concebe os telemóveis como algo imprescindível, uma geração que abre caixas para ver fotografias amareladas.


Talvez a poesia que encontrei no título, nas flores partidas e nos vasos inteiros, seja a mesma que encontrava nas caixas de fotografias e na música em discos de vinil e nos filmes a preto e branco e no retinar violento do telefone. E nas cartas que escrevo como supremo prazer romântico, na tentativa de me achegar a uma época que não é, de todo, a minha.
 
Wednesday, January 11, 2006
  O homem que tinha um canteiro no bolso
Quando o vi, ele monologava com uma senhora. Estavam os dois sentados à minha frente; ele falava, falava, falava. Não dos seus canteiros, aqueles que levava para qualquer lado, mas de qualquer coisa que tinha a ver com dinheiro. Desinteressei-me: tenho tão pouco que prefiro não ouvir o que os outros dizem acerca dele. Fixei o meu olhar na senhora, era pequena e tinha cara de rato, com uns óculos demasiado grandes para a cara pequena

[Ainda estive para lhe perguntar se se chamava Eleanor Rigby.]

que a faziam ter um ar encolhido em si mesmo, como se vivesse dobrada em si para se proteger. Ele falava falava falava. E enquanto falava, o molho de coentros que tinha plantados no bolso do casaco abanava-se, como se fosse o vento que os acariciava e não os movimentos espasmódicos que o homem fazia. Continuei sem me sentir interessado na conversa, mas o homem fascinava-me: dos bolsos laterais – porque o ramo de coentros estava plantado no bolso da lapela – nasciam gerebérias. As gerebérias nasciam do lado esquerdo porque as flores mais bonitas nasciam do lado direito, as frésias, umas frésias silvestres nascidas no bolso de um homem. Olhei instintivamente para as mãos

[A senhora com cara de rato e óculos grandes cerrava os lábios e fingia não ser para ela o monólogo.]

do homem, que eram grossas e grosserias. As unhas ainda guardavam pequenos laivos de terra, a mesma terra que alimentava as suas gerebérias e as frésias e os coentros. Olhei-lhe para os sapatos e dei-me conta de umas rodas, um carrinho de ir ao mercado, daqueles que eu via em moço pequeno, cheio de sementes com que se plantava, com que enchia os bolsos do casaco, da camisa e as dobras das calças. Tudo era lugar para plantar flores e ervas da sopa e da comida.

O senhor levanta-se a vai-se embora. Olho as frésias e sei a quem podia oferecer uma, sei quem ficaria feliz por ter uma flor daquelas, a sua preferida. Mas eu não tenho canteiros nos bolsos do casaco, eu não sei fazer isso.
O homem levantou-se, deu um jeito ao cabelo desgrenhado e despenteado, pouco, ajeitou os óculos no nariz e passou por mim. Estiquei uma mão e recolhi-a.

[A senhora com cara de rato e óculos grandes diz-me «eu cá nunca respondo a esta gente».]

Pensava no que faria, nem sequer fiz caso do que me foi dito. Não há nada mais bonito do que um homem com canteiros nos bolsos.
Olhei para as minhas mãos vazias e inventei um envelope para enviar a frésia imaginária que roubei. Tinha cartão com palavras bonitas e tudo.
 
Sunday, January 08, 2006
  Metafísica da Vida
Corremos. O ar estava frio e nós corríamos. À nossa frente corriam algumas pessoas com a mesma intenção; corríamos todos. O ar estava frio e eu estava com calor porque corria, porque exigia ao corpo um esforço suplementar para depois poder descansar.
Chegámos à paragem do eléctrico e eu suava, nasciam pequenas gotas na minha testa que o ar frio insistia em cristalizar. E depois de vermos tantas pessoas correr à nossa frente, depois de fazermos nascer o suor nas nossas testas, decidimos com um sorriso que iríamos subir ao castelo a pé. E subimos e mais suor nasceu e cristalizou nas nossas testas. Porque já andamos fartos de transportes e andar a pé é bom e mesmo que chegássemos cansados, a busca daquilo que procurávamos sempre era melhor se fosse com esforço, porque maior seria a recompensa quando conseguíssemos entrar, quando aos nossos pés a cidade se deitasse – tamanha é a arrogância desta afirmação, mas por outro lado, eu também sou arrogante!

Sim, a cidade caiu aos nossos pés. O outro lado do rio mostrava-me o pórtico da Lisnave, aquele pórtico vermelho que a aprendi a descortinar da varanda do Adamastor há uns Verões atrás, onde aprendi a olhar o rio e vi as conversas a nascerem nos nosso lábios, desceram por entre quintais, ruas e vielas até ao rio, onde desembocavam a nadavam.
Mas era mesmo o pórtico que eu via. E não era do pórtico que eu queria falar; mas aquele monólito metálico captava a minha atenção da mesma forma que o miúdo espanhol que cuspia para o chão, para uns quintais nos baixos das muralhas do castelo: não resisti e enviei-lhe um olhar duro. Parou, avaliou-me; decidiu que era melhor não repetir a graça. Não porque eu o tivesse repreendido com o olhar, não por sido eu, mas justamente por não ter sido só eu. E a cidade tinha caído aos nossos pés e o pórtico da Lisnave mantinha-se intacto, como nas noites da varanda do Adamastor, com um copo de cerveja na mão e um cigarro noutra.
Lembro-me de há dias me terem dito que eu escrevia sobre a metafísica da vida. Não confessei que não sabia muito bem o que queria dizer metafísica, mas achei que aquilo me tinha sido dito num contexto elogioso, ou que pelo menos a minha escrita abarcava qualquer coisa de importante que valia a pena uma palavra que eu não sabia muito bem o que queria dizer. Não interessa, porque na verdade, só agora é que as cristalizações de suor da minha testa começavam a secar e a desaparecer eu não pensava em metafísica. Mas eu não escrevia sobre a metafísica da vida, escrevia sobre aquilo que via, a vida dos outros, aquilo que me acelera o coração até à exaustão e aquilo que mo faz abrandar até quase parar. Se calhar isso é a metafísica.

MAS EU ESTAVA NO CASTELO A VER O PÓRTICO DA LISNAVE! E O RIO E TUDO MAIS QUE HAVIA PARA VER!

E não há nada de metafísico nisto. Gosto do sol da tarde e de ver o rio.
[A interrogação metafísica deve desenvolver-se na totalidade e na situação fundamental da existência que interroga.] Só no caso de alguém estar com dúvidas.
 
Monday, January 02, 2006
  Music Hall
Há noites que são para ser noites que nunca se hão-de esquecer. Num bairro lisboeta, como os há na cidade, numa casa igual a tantas outras três pessoas combinaram uma conspiração. Combinaram a conspiração dos males do mundo: fizeram-lhes o diagnóstico e apresentaram as soluções.
[E um rádio tocava música saída de um rádio com transístores ou válvulas, porque era um rádio antigo. Era mesmo um rádio antigo: tocava jazz perdido no tempo. Senti-me bem em casa.]
As soluções brindavam-se com copos de vinho tinto e as horas passavam, os sorrisos permaneciam numa noite que estava vista de inúmeras outras formas. Porque foi uma noite de revolução. Todas as noites, numa cozinha minúscula, com uma toalha de xadrez vermelho e branco e copos de vinho são noites de conspiração e revolução.
[O rádio ouvia-se ao longe, noutra divisão, mas não fazia mal. Era uma conspiração caseira, não cozinhada. O jazz parou e a conversa suspendeu-se. Ouviram-se doze vezes o mesmo som monótono: e depois, o jazz retomou exactamente onde tinha ficado, como se alguém o tivesse posto em pausa, durante os últimos doze segundos.]

O que decide a passagem de um ano para outro? A fronteira é mesmo as 23h59’59’’ de um dia e as 00h00’01’’ do outro? Quem decide? Fará mesmo sentido que se decida um dia para se mudar de ano e se passar com as pessoas de quem se gosta. Se gostamos mesmo das pessoas não se passa um dia por ano com elas, ou não se marca uma data para passar com elas. O ano demora um ano a passar. Então vamos passar um ano juntos, vamos passar uma vida juntos. Queres?

Sei que o jazz continuou, já sem estar entre parênteses, assim como a conspiração. Mas conspirava-se mesmo o quê? Espera, espera. Antes dos males do mundo. É que a música bulia mesmo com os meus nervos, mexia-se em mim. Sempre tive esta sensação com a música, mas estava a ser diferente, sentia-me mesmo transportado para outro lugar qualquer. Mas estava ali e estava onde queria estar com as pessoas com quem queria estar – faltavam algumas – e naquele dia, naquela casa, naquela incompreensível transição, numa conspiração com cheiro de revolução.
Era tarde quando os conspiradores se resolveram a descansar. É preciso recuperar forças para a revolução.

Mas então conspirava-se o quê?
Ah, os males do mundo. É que quando gostamos das pessoas já nem queremos saber dos pretextos, queremos é estar com elas. Pois, os males do mundo. E os nossos bens.
 
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