Fantástica Gramática Automática
Thursday, March 30, 2006
  Meteoro Lógica e meteorológica
Uma fina camada cobre o céu. Não são as nuvens carregadas de um Inverno sem chuva, de um Inverno. É uma pequena camada outonal que chega na Primavera, filtrando o sol e tornando a luz vaga, dúbia, esbatida, esmufada. As pessoas desconfiam e saem de casa com os guarda-chuvas e com impermeáveis. Uns arriscam-se ao tempo arisco e inconstante. Não diria que chove, mas as possibilidades de aguaceiros são pequenas. E a luz é boa para tirar fotografias.

NORTE: Céu em geral muito nublado. Vento em geral fraco (10 a 20 km/h) do quadrante oeste, soprando temporariamente moderado (20 a 35 km/h) de sudoeste no litoral e moderado a forte (30 a 45 km/h) nas terras altas. Períodos de chuva, mais frequentes no Minho e Douro Litoral. Subida de temperatura. Neblina ou nevoeiro matinal.
CENTRO: Céu em geral muito nublado. Vento em geral fraco (10 a 20 km/h) do quadrante oeste, soprando temporariamente moderado (20 a 35 km/h) de sudoeste no litoral a norte do Cabo Carvoeiro e moderado a forte (30 a 45 km/h) nas terras altas. Períodos de chuva a norte do sistema montanhoso Montejunto-Estrela. Subida de temperatura. Neblina ou nevoeiro matinal.
SUL: Céu em geral muito nublado por nuvens altas. Vento em geral fraco (10 a 20 km/h) do quadrante oeste, soprando moderado a forte (30 a 45 km/h) nas terras altas. Subida de temperatura. Neblina ou nevoeiro matinal.

Está uma senhora parada no passeio a olhar em direcção ao rio. A camada do céu tornou-se demasiado fina e ela abre o guarda-chuva para se proteger do sol. Veste preto e começa a suar. Morreu-lhe alguém há muito pouco tempo. É sempre pouco tempo quando morre alguém de quem gostamos. Distraí-me e já não vi o guarda-chuva negro que tapava um vulto negro na claridade da luz de um fim de manhã luminoso. Olhava na direcção do rio, mas nada via porque a fina camada que vemos no céu ergue-se do rio, que hoje é cinzento claro e tem águas traidoras.
Era nova e ia à igreja, vestida de preto. Morreu-lhe o marido marinheiro numa manhã luminosa e cinzento no Tejo. E canta o seu fado num destino desfeito.

Deus não me deu/um namorado/deu-me/o martírio branco/de não o ter
vi namorados/possíveis/foram bois/foram porcos/e eu palácios/e pérolas
(…)
Ou:/um dia/tão bonito/e eu/não fornico

A lógica dos meteoros junta o vento e o sopro da fala; a água e a saliva do beijo; o fogo e o sexo incandescentes; a terra e a cama onde se deitam.
O dia está bonito e é bom estar na rua, vestidos de preto ou com mais cores, sem impermeáveis e sem guarda-chuvas. Há mais pessoas na rua e não reparam na mulher vestida de preto. Porque já não é uma menina nem uma rapariga. Ainda não é uma senhora. É uma mulher, que se esconde. É uma mulher feita, crescida e madura. E ninguém repara nela.
 
Tuesday, March 28, 2006
  Acasos de amor e fotografia
Algo se escapa por entre os meus dedos como se fosse a areia fina da praia. Tento agarra-lo, mantê-lo mas não consigo inventar uma prisão porque não sei o que é. Faço caixas e peneiras e lugares mas a areia mental continua a escapar-se por entre tudo o que invento.
Como agarrar algo que não sabemos o que é?
Maldita luta desesperada contra o invisível e indizível.
Ficou-me na memória um beijo que me deram na cara. Há um ano. Ficou-me na memória outro beijo. Há vinte e três dias. Olho para as fotografias que ficaram desses beijos e fico que a impressão de quem lá está não sou eu, não posso ser eu. Nunca me tinha visto assim. A algo que me escapa. Não sei o que é. Aquela areia mental que se escapa entre os dedos, algo que quero agarrar para guardar bem junto de mim. Procuro outras fotografias e vejo-me a sorrir, a dormir, a fazer caretas e a rir. E em duas fotografias apenas, há algo muito maior que tantos outros momentos juntos.

O que é a imagem fotográfica? Uma fracção nanométrica de toda a nossa existência. Ou da existência de outros. Uma fracção nanométrica. E se juntarmos todas as fotografias que temos, nem um minuto da nossa vida conseguimos constituir.
A fotografia tem uma espécie de tempo intemporal. Paradoxalmente podemos tocar-lhe e não. Tocamos-lhe porque faz parte de um momento que vivemos e sentimos. E é intocável porque faz parte de uma fracção tão pequena que às vezes parece que não existiu.

Na mão que tentava juntar a areia mental ficou um grão. Sento-me no chão e observo. Olho um e outro e mais aquele. Rio-me porque já sei o que dali vem. Montam-se duas fotografias com trezentos e quarenta e dois dias de diferença. Duas fotografias de beijo. Não são os grãos da areia mental que as formam é a minha cabeça. Aquilo que eu não conseguia perceber era a felicidade. A minha.
 
Sunday, March 26, 2006
  Ao serão
É de noite mas não está calor. Não está o calor que devia estar quando estas coisas acontecem. Porque tem que estar calor para as janelas estarem abertas e os ruídos da noite entrarem em casa com a familiaridade de uma porta aberta na aldeia. Há uma familiaridade universal nos ruídos noite que entram em casa. Especialmente no Verão.
A janela da cozinha estava aberta e ouvi o comboio de mercadorias passar. Vinha de Sta. Apolónia e passava na estação de Marvila. Não tinhas ninguém nos cais e os vagões de carga do comboio iam quase vazios, aparte de algumas pessoas que fugiam – quem sabe se delas próprias – e de uns quantos sacos de qualquer coisa. Passou o comboio e fez vento na estação de Marvila. Um vento que ninguém viu e sentiu. Um vento de Quaresma quente e cheio de desgraça, assim se benzem as velhas nas casas no bairro abandonado quando passa por elas. Benzem-se a afugentam o diabo.

É de noite mas é cedo mas os ruídos da noite dizem-me que já são quatro da manhã e que o comboio de mercadorias é o primeiro que vai para uns montes, uns lugares, uns sítios quaisquer que não consigo imaginar. Para mim vai sempre tudo para um lugar seco de planícies e vales suaves porque é lá que tudo e solitário e vazio. É lá que se espiam os pecados, quando se chega de uma noite de vigília no vagão de mercadorias de um comboio que vai quase vazio. Levam dois personagens de um romance escrito por uma adolescente que li quando era adolescente, The Outsiders.
Sei que é um Março frio e chuvoso, mas os ruídos da noite trazem até mim um Suão deslavado que me finge o Verão. O comboio passa na linha, no bairro onde as velhas se benzem por causo do vento da sua passagem, tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum e o som vai desaparecendo, misturando-se nos ruídos da noite à medida que o comboio se encaminha para esse tal lugar seco com planícies e vales.

O comboio passou, o Suão também e as velhas benzeram-se. Amén.
Os ruídos da noite fizeram-se ausência de barulho, até de silêncio.
Voltou o frio e o serão de Março.
Estendi o lençol e voltei para dentro.
E respirei, antes de fechar a janela, o cheiro a Primavera.
A estação de Marvila continua vazia. Só amanhã o quiosque.
 
Thursday, March 23, 2006
  Sons Mudos
Em silêncio. O meu silêncio é o barulho. O barulho em forma de música, em forma de sons concretos, em forma de notas harmónicas e compassadas em três por quatro e quatro por quatro e dois por quatro sem ordem aparente a não ser aquela que eu determino, aleatoriamente.
Consegues ouvir o silêncio? Não é nada de especial o silêncio. É apenas mais um barulho que não soubemos nomear. É o zumbido que ouvimos, é a camada som que está debaixo de qualquer outro som. É o que ouvimos nos nossos sonhos quando não nos lembramos deles. Isso é o silêncio.

Há uma praia que conheci – há tantas praias que conheci. Esta é diferente e conhecida mas eu quero que fique desconhecida porque neste momento quero ser o único a tê-la, a lembrar-me dela, nas diferentes formas em que a absorvi. Estava tanto vento que a areia queimava as pernas, como se incontáveis fagulhas de fogueira e lareira queimassem as pernas ao mesmo tempo. E mesmo assim valia a pena estar lá. Voltámos para dentro do carro e estivemos à conversa, a ouvir música, a fumar, a beber uns restos de vodka que ainda havia debaixo do banco. Ríamos e tocávamo-nos; não importava que nos vissem a beber pela garrafa.
Voltámos dias depois, sem vento e sem a areia a voar para nos magoar. Não voltámos para o carro e ficámos na praia quase até ser de noite. Não fizemos nenhuma fogueira nem vimos as estrelas e a lua. Não bebemos vodka mas bebemos saliva.
Estou a pensar na praia agora. Está frio vento e chuva e as ondas devem estar num rebuliço. Mas a praia está invisível. Não porque não exista, porque existe mesmo, mas porque não há lá ninguém para ver. Encho a praia com todos os sítios dela por onde passámos: conseguimos até aparecer em vários lugares ao mesmo tempo. Faço-te adeus; faço-nos adeus de mão dada contigo.

Amanhã o céu vai continuar a ser cinzento. A chuva vai-se abater sobre a areia que vai ficar mais escura, como a maiorias das coisas quando são lavadas e levadas pela chuva. O céu vai-se agitar em cinzento e o mar em verde. A praia enorme vai-se deixar espalhar pela chuva, vai estar de novo invisível. Podia lá parar o carro e beber uma garrafa de vodka sozinho.
E mesmo que o rádio do carro estivesse ligado ou que estivesse a tocar um disco qualquer ou que nada estivesse a acontecer a não ser eu dentro do carro ou nós dentro do carro o silêncio vai lá estar. E mesmo que nada disso acontecesse e o silêncio também lá ia estar. É de noite e tu do vai ser varrido pelo vento e chuva e ondas. Porque é a praia.
 
Wednesday, March 22, 2006
  Ground Zero
“Não sabes escrever.”
«Eu sei.»

“Não sabes escrever.”
«Eu sei.»

“O que é que sabes?”
«Que não sei escrever.»

No local onde as torres gémeas caíram há agora um buraco. Ou havia um buraco que foi tapado com sucessivas camadas de terra, betão, mais terra e plantas. E depois puseram lá pessoas para que aquilo parecesse um jardim. Não sei se foi isto que fizeram, nem sei o que vai ser feito a seguir, outro edifício com um memorial e pronto. Sei que é um lugar onde a vida começou do zero, do abaixo de zero. De um buraco no chão. Foi um início a partir do antes do princípio.
Mas agora, qual é a probabilidade de voltar a acontecer o mesmo? Na escrita e nas torres gémeas. Porque deixei mesmo de saber escrever e as torres já não se vão voltar a erguer. Ou se o fizerem, será com um formato diferente.

Vou na rua e imagino-me sentado ao computador; saio do autocarro, contorno a esquina e baixo o olhar para não ter que dizer olá, para não ter que sorrir. Sairia um esgar azedado, decerto. Chego-me à porta do prédio e quatro miúdos partilham dois litros de cerveja em copos de plástico, duas garrafas amareladas, acastanhadas, avermelhadas. Partilham regiamente e fazem caretas quando bebem. Calam-se quando passo por eles e nessa altura não consigo reprimir um sorriso. Não queria sorrir, não queria achar piada a nada, apetecia-me estar confinado a mim.
Deixei-me rir e entrei no prédio. Virei as chaves na mão e comecei a abrir o correio. Não resisti a olhar para o outro lado da porta, vidrada, para o grupo que fazia caretas por estar a provar cerveja pela primeira vez. Os nossos olhares cruzam-se e num gesto de audácia estica-me o braço com a mão que segurava o copo de plástico, num gesto de oferta. Ri-me e não esbocei nenhum gesto. Só me ri. Nenhuma outra reacção me ocorreu: não queria ser paternalista nem queria ser parvo. Queria aceitar, mas não fui audaz, mais um ponto para a fraqueza de espírito. Mas ri-me.
Tenho visto mais garrafas à porta do prédio, talvez já não façam tantas caretas e daqui a uns anos se arrisquem a beber dentro de um café.

Volto a pensar na escrita e no jardim de almas. Porque são os dois exactamente a mesma coisa. Um jardim de almas inscrevível. A minha escrita e um início antes do antes do princípio.
 
Sunday, March 19, 2006
  Sem título #4
Gosto de escrever aos Domingos porque parece que não há mais anda para fazer. Não se vê ninguém nas ruas mas os centros comerciais estão a abarrotar e a arrotar; eu também arrotava se tivesse engolido uma horda. Os dias de nuvens como hoje pedem passeios de casacos quentes. Não que esteja um dia especialmente frio, mas há-de estar quando o sol que não vemos desaparecer. Quando chegar a noite. Uma vez, no Inverno, passeei numa praia de noite e a chover: não era bem de noite, mas era ao fim da tarde e já estava escuro e não havia sol e se for de noite quando o sol se põe e não quando começamos a dizer que são oito da noite, então já era de noite. Caso contrário era um fim de tarde.
Ainda é Inverno. Que inferno.

sonhei aos vinte anos (…)
que eu tinha roubado a minha vida
(…)
decidi ir contra a futilidade do romance
E roubei sem a devolver. Acabei por ter que a ir resgatar numa película fabulosa com Errol Flinn, coisas com espadas e canhões. Não havia cá vida nenhuma presa no alto de uma torre, estava mesmo presa na masmorra mais funda e escura. E então? Não acabámos por protagonizar um dos salvamentos mais ousados de todos os tempos? Claro que sim. E resgatei-a e é minha. Lutas interiores são um sarilho desgraçado, é dar sempre uma no cravo e outra na ferradura.
Gosto do verso em que decidi ir contra a futilidade do romance; especialmente porque não é de todo verdade. Pode ser verdade e pode não ser, por isso é que não é de todo verdade, é uma meiazinha verdade. Acho que também deixei estar esse verso porque acho que tem um encanto qualquer, porque também eu me debato com a dúvida da futilidade do romance ou da importância do romance. Mas falta um verso que omiti e explica o romance, que até eu já estava perdido sem perceber peva do que estava a escrever.
E vai assim: depois de treler o monte dos vendavais. Por isso é um romance-livro, não é um romance-romance-de-amor. Para que não haja confusões acerca do romance.
Há ainda dúvidas que ficam sobre o romance, sobre essa corrida de resistência contra o tempo e contra a imutalidade criativa. O trabalho de resiliência criativa tem o seu mérito, mas justifica-se a existência? Fica a dúvida que carrega mais os ombros no início de cada trabalho.

fui apanhado aos vinte e dois anos
em plena capicua inocente e rua
em amantíssima posse viral
E descobri o que era o amor. Sem querer nem saber fui. Era capicua porque quando tentava inverter o resultado e compreender o processo reverso ia sempre dar ao amor. E quando foi a capicua de duas pessoas, que a via através de outros olhos, foi igual e de trás para a frente e traz para frente que já não vale a pena esconder.
 
Thursday, March 16, 2006
  Adília
Não foi assim que começaste mas podia ter sido. Merda de casa cheia de um bric-à-brac francês que tentavas pôr nas mãos das pessoas que lá iam para que mais tarde se lembrassem de ti. Mesmo que não desses nada, as pessoas continuavam a lembrar-se de ti Mas começaste por dizer
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
como apresentação. Olhei para todo o lado a tentar ver algumas baratas. Não vi. Mas vi muitos gatos, de verdade e de porcelana. E acho que tu vias mais alguns, porque só contei seis e tu nomeaste nove. Alucinavas ou já tinham morrido ou já os tinhas dado? Não te importas que te trate por tu? Ou prefere que a trate de outra forma? Seja tu.

Tenho que contar esta história porque quando fui à tua casa estavas a beber chá com um pé engessado. Disseste-me que os amigos não são só para os momentos em que estamos com os pés enjeitados, são também para quando temos a alma engessada. Pára de me bater com a canadiana, vou contar a história. E vai fazer chá, não acredito que estejas assim tão mal como dizes.
Não gosto de gatos, nem de verdade nem de porcelana, olho para a minha colher e tem um pelo e oito grãos de açúcar mascavado. E a casa está cheia de gatos e tudo começou porque
O algodão doce
assustou-a
a ponto
de saltar do carroussel
em andamento
e de torcer o pé
Está mesmo tudo explicado. Menos o pelo de gato que me está a arranhar a garganta.

Ela olha-me através das pagines de um livro que há muito está pousado na minha prateleira. Olha-me a através da cara redonda e dos óculos enormes que tem, de massa castanha, acho, porque a fotografia é a preto e branco. Estás viva na fotografia e sorris. As fotografias são sempre de pessoas vivas, não são? Não, os retratos é que são. Porque até já há fotografias de corpos mortos e mutilados e mandados para as masmorras mortuárias. Armazéns de almas.
Para quê sacrificar mais uma página em branco?
se ainda escrevesse em peles de bezerros recém nascidos
atrevia-me a sacrificar bezerros recém-nascidos?
acho que sim
Ainda bem que escrevo na internet. Poupa-me estes dilemas. Agora estás orgulhosa de mim, não estás? Podia também escrever o poema do mongolóide que fala de caixas de soutien e viagens de autocarro. E de espíritos. Gosto mais de alma. Gosto mais porque dá para fazer uma aliteração com a palavra aliteração e armazém. E com todas as palavras que começam por «a». Sabes quantas são? Eu também não. E quem rima sem querer é amado sem saber e eu já rimei tantas vezes que estou a ficar convencido.
Tantas?, foram só duas. Mania de aumentar. É também a minha história
Tua e da Adília.
, não é só a minha porque é tudo aumentado. Não sou assim tão interessante nem escrevo poemas. Já escrevi. Porque
(…)
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
se os meus poemas
contribuírem para isso
são excelentes
Pena ter deixado de escrever. Agora adeus
I’m late, I’m late, for a very important date.

As melhoras para o pé torcido. E o pelo que não sai da minha garganta.
 
Tuesday, March 14, 2006
  Análise Criadora
Não há nada que um céu sem nuvens consiga esconder: só os céus de nuvens é que conseguem esconder a perversidade, é que trazem o oculto, aquilo que está escondido entre o fumo aquático. Os céus azuis trazem lágrimas; trazem as mesma lágrimas de dor e felicidade que os céus cobertores. Os céus azuis também trazem as lágrimas do orvalho não habituado à luz primaveril e estival. Fecham-se os olhos, molhados, saudosos do sol e do calor.

Tentei ser neutro e descaracterizado. Tentei ler as coisas de uma perspectiva vazia de opinião, tentei escrever sem ver pelos os meus olhos, sem sentir as pessoas que me tocavam e os sentimentos que brotavam de cada palavra. Tentei ler com os olhos que não eram meus.
Caí no alcatrão porque não aguentei ser mais ninguém. Estava morno e acolhedor, o negrume. Subia-me pelas costas, pelas coxas e pernas, pela nuca, o calor da terra através das camadas negras. Descia a mim o céu cinzento, não o brilhante gemático que incendiava as sombras, mas sim um céu oculto, aquele que faz o mar verde, que revolve as algas com a violência do vento.

Lembro-me desse vento invernal que desarranja as roupas estendidas na rua que levanta o lixo e o pó pouco antes da chuva o fazer de novo assentar em lama. O vento não se consegue ver, não se consegue descortinar a sua passagem. Sente-se, sente o meu sopro violento. Como explicar algo que se não vê?
Vês a árvore a abanar?, faz que sim com a cabeça. É o vento. O vento é a árvore? Não é o vento que faz a árvore abanar, que a agita. Sopro-te para a cara e vês o meu sopro? Não. Sente-lo? Sim, mas sinto-te sempre, mesmo quando não estás.
Então tu és o vento, és aquele murmúrio trazido pelo tempo parado quando me deito e sonho. És quem me sopra as feridas quando caio. És o sopro quente do siroco e do suão quando está frio. Sou. Sou o movimento na ausência, sou o barulho no vácuo. Sou o olhar perturbado na neutralidade, no impermeável que deixa que as correntes corram através dele e o marquem mas não magoem. Sou.

Deste três passos à frente porque não querias estar três passos atrás. Eu dei quatro passos às frente só para poder ficar um passo à tua frente. Deste mais dois, só para me provocar. Olhei para a tua cara e estavas séria; olhei com mais calma e vi como reprimias os sorrisos, os dentes a ranger para a boca não abrir, para o siso não se desfazer. Aceitei o protocolo e também dei dois passos. Deste três e não sustiveste o sorriso. Antes de eu começar a dar outro passo já tinhas largado numa correria louca. Depois foi fácil, foi só apanhar-te.
E tão cansados, fomos a andar.
 
Monday, March 13, 2006
  Identidade
Transforma-te naquilo que és. – Nietzsche

Ou transforma-te naquilo que também és. Já está.
 
Friday, March 10, 2006
  Elegia a uma manhã a dois
Não era o sol que entrava pelas frestas da persiana – e ouço a tua voz dentro de mim – “estore, estore”. Está bem,
não era o sol que entrava pelas frestas do estore, o que entrava era uma luminosidade difusa pelo reflexo do rio, uma luminosidade cinzenta. Que fez com que acordasse. Não poucas vezes utilizo esse artifício para acordar mais cedo, deixar algumas frestas da persiana – vou-me rindo outra vez e emendo – deixar algumas frestas do estore para acordar com a luz natural em vez de acordar com o despertador.
Penso em ti e em como nos crescemos. Um dia hades ver, dizes tu; “hás-de, hás-de”, corrijo entre dois sorrisos. Ora, respondes-me com um beijo para desviares a atenção.

A cama era enorme e estava sozinho porque não tinha quem estivesse. É por isso que a cama era enorme. Qualquer cama é gigantesca sempre que não durmo contigo. Perco-me no meio de tantos lençóis e cobertores, tenho sonhos que não são sonhos, mas sim arranhos de realidade porque misturam aquilo que se passou com aquilo que ainda há-de ser com aquilo que desejo com aquilo que tenho medo e tu dizes-me sussurrado
“não podes sonhar assim, tens que tentar que esses pensamentos parvos não existam dentro de ti, tens que os afastar. Eles são só sonhos, não são realidades”
quando te conto os sonhos.

Mas não era só eu que sinto os sonhos, não era só eu que acordo de manhã com a luz cinzenta. o teu quarto é virado para o pequeno quintal onde, às vezes, plantamos flores; quando não chove ou neva ou quando não esté aquele frio abrasivo que queima as mãos que revolvem a terra, que ficam castanhas entre os filamentos das impressões digitais.

Não era o sol que entrava pela janela aberta, era a luz filtrada pelas nuvens. Pelas cortinas japonesas que comprámos uma vez num mercado de objectos roubados. E pela outra cortina que era um lençol dobrado.
Acordamos ao mesmo tempo em quartos inundados de luz, em quartos que são nossos, nossos, nossos, dos dois, partilhados. Todas as camas são demasiado grandes quando estamos sozinhos. Esticas o braço para apanhar o telemóvel que repousa em cima de qualquer coisa que já não sei – porque o telemóvel está à distância de um esticar de braço. E lês

Quão feios são os telemóveis nos textos românticos, quão mais bonitas são as cartas, os postais, os aerogramas. Aquilo em que se escreve e não se lê num ecrã.

a mensagem matinal que te enviei. Dizia coisas bonitas com palavras bonitas como “amor” e “sempre”, “desejo” e “abraço” e “beijos”. Cai o telemóvel em cima das cobertas da cama e pensas endorminhada numa resposta.
A melhor resposta para aquilo que me querias ter dito ao ouvido teria sido lançares-te para cima mim e fazermos amor. Pegas no telemóvel, olhos ensonados e apaixonados. Os dedos carregavam devagar nas teclas, ainda pouco obedientes ao cérebro.
Se aqui estivesses…

This is the room where we met
(…)
This is the room where we met
This is the dress I had on
This is the moment you fear
When you wake up and no one is there
Belly – Judas My Heart, King [1995]


[Inicialmente chamado “Quartos, cortinas e estores” e escrito na terceira pessoa do singular embora nunca o tenha sido.]
 
Tuesday, March 07, 2006
  Bater de coração universal
As pessoas caminham na rua e não dão conta. Concentradas nas passadas e nos passados, no caminho que dista de um ponto ao outro, na linha recta, no voo de pássaro que as leva de um sítio para outro. Cada passada pode ser uma batida de coração, um movimento bio-eléctrico que nos permite dar a outra passada, a que vem a seguir e a outra e a outra e a outra e a outra. À nossa volta, vida acontece. Não é A vida que acontece, é vida que acontece, não interessa a de quem, não interessa se é a de ninguém ou a de Ningãe.

Pára de passar essa passada larga. Pára!
À frente vais um casal de namorados que só mais tarde se percebe que são namoradas. Não interessa. O que é que isso interessa? E tu disseste, «nada». Vês?
Vão de mão dada, caminham a passo de passeio, sem pressa e sem pensar na forma mais rápida de chegar a um ponto a partir de outro. Caminham e olham e as mãos dadas acariciam-se. Apesar do frio que frieira as mãos, estão sem luvas e acariciam-se. Ao olhar para elas ninguém as diria capazes de amar: pinturas carregadas, tudo preto e escuro, negro como as almas perturbadas e ensimesmadas, tudo demasiado egoísta para um gesto desprovido de egoísmo ou de alternativas intenções.
Não havia preconceito, apenas a vontade de estar a acariciar as mãos, apenas a vontade de sentir o frio a friar a mãos e passear debaixo do céu.

Nove passos atrás, olhava em volta. Não vêem? Olhem, Olhem! As passadas das pessoas fazem um bater de coração descompassado de tão apaixonado. A cada segundo morrem mais de mil pessoas e a cada segundo nascem mais de mil pessoas. Outras tantas fazem amor e declarações de amor. Mais umas passadas descompassadas das pessoas que não sabem que contribuem para o bater de coração universal que acontece neste exacto momento, em que se concentram na distância entre um ponto e outro.

O mundo é demasiado grande para ser meu. Porque eu sou apenas mais um impulso eléctrico que estimula o coração a bater.
 
Monday, March 06, 2006
  Amigos
A Galinha,
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O Cão,
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E o Painkiller.
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