Fantástica Gramática Automática
Tuesday, September 26, 2006
  Fim do dia a olhar para a linha do comboio
De manhã, leio no autocarro e no metro. À tarde não. Não que não tenha forças, nem que o livro não me interesse, mas não. Observo o cheiro das pessoas. Nessas alturas as pessoas têm um cheiro cansado, um cheiro a suor subtil. Não aquele cheiro de quem fez trabalho braçal as oito horas do dia, mas de quem sua ao longo do dia e o suor seca na camisola. E voltam a suar e o suor volta a secar. As ansiedades e contingências de uma dia que podia ser diferente mas que acabou por ser assim. Não é um cheiro mau, é cheiro, é de pessoas. Há quem encoste a cabeça ao fresco do vidro e feche os olhos, há quem desaperte a gravata. Há ainda quem abra a janela e sinta o fresco da tarde a correr no corredor no autocarro entre os rostos cansados. Há quem faça o que quer que seja por um poucochinho de liberdade ao fim do dia. No meio de multidões, sozinhos com pensamentos.
Eu teço vidas para as pessoas. Em cada uma que olho, vejo tantas coisas que são mentira, tantas que são verdade, tantos jogos de conjecturas e invenções. Vejo nas mulheres cansadas que não falam nem com ninguém trocam palavra vidas duras. Vejo vidas no precipício e imagino que quase todas se tentaram suicidar. Porque não é fácil viver dentro de um bloco de betão no meio de carreiros de alcatrão. Mas mesmo que não se tenham tentado suicidar pensam na morte. Para mim, quase todas pensam na morte. Não precisam de ter ninguém que as agrida quando chegam a casa nem que se zangue nem que as odeie. Podem ter alguém que faça amor em vez de foder e com quem durmam de mão dada. É um bálsamo, mas é durante a noite, sabe a pouco julgo eu. Mas pensam na morte. É o que invento.
Quase a chegar a casa, uma visão há algo que me distrai ainda mais. Capta tudo em mim pela beleza da imagem. A imagem não é fotográfica nem fotografável. Não pode ser manipulada porque é única e genuína, acontece e há-de acontecer. É tão poderosa que acabo por sair numa paragem depois da minha casa.

Uma mulher, com três sacos do Minipreço numa mão e um só na outra, olhava de cima de uma ponte, para a linha do comboio, entre as estações de Marvila e o Poço do Bispo.
 
Monday, September 25, 2006
  Consciência Social
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Por Rui Pimentel in Visão n.º 704, 31 de Agosto de 2006. Retirada daqui.
 
Saturday, September 23, 2006
  Elegia ao Outono
O MOVIMENTO CHEIO,
Sento-me na varanda onde comecei a fumar às escondidas na Páscoa e mais declaradamente pouco depois disso. Sento-me numa tanque antigo virado ao contrário e pintado de amarelo pela minha irmã. É de noite que ali se está melhor, quando um vento como chamamento vem do rio. Não há silêncio, é impossível haver silêncio nesta parte da cidade. À distância, quase consigo ouvir os carros que aceleram na Ponte Vasco da Gama. Há os navios que aportam e os guindastes que os descarregam. E o comboio que passa na estação que já ninguém usa. Não pára, passa. Mas não é isto que enche a noite: é o vento, o vento enche o espaço cheio de ar.
O AUTOCARRO ARRANCA A MEIO
O motor arranca com tanta força, faz a curva em aceleração, acorda quem não está habituado. É de noite, ainda é a mesma noite e os autocarros arrancam para fazer a última viagem antes de começar a rede da madrugada. Ao mesmo tempo que o monóxido de carbono sai do escape do autocarro e levanta as folhas, o vento da segunda noite de Outono sopra e arranca das árvores as folhas que se misturam com as que se elevam.
NA PRAÇA VAZIA.
Há uma casa de banho pré-fabricada onde os condutores dos autocarros vão cagar e mijar. Há um quiosque onde uma senhora que põe laca todos os dias e que agasalha o cão quando é Inverno, vende jornais. É isso que se faz num quiosque. Vendia módulos, se os módulos não tivessem deixado de existir.
Olha com desdém para as mulheres que se sentam na esplanada e comentam qualquer coisa que lhes interessa muito e que não me interessa nada. Vidas alheias, mas nunca as suas. A não ser, talvez, as desgraças.
NO CAIXOTE DO LIXO
Em frente à mercearia, o caixote do lixo do meu prédio. Não transborda desde que o merceeiro morreu. Senti a morte do merceeiro: não porque deixei de ter fruta fresca todos os dias, mas porque gostava dele sinceramente. O Sr. Manuel. Não gostava da viúva, que voltou a abrir a mercearia, nunca mais lá fui. Dizia sempre bom dia e boa tarde e não tinha hora de fechar. Era quando o ultimo freguês se tivesse ido embora. E como qualquer bom merceeiro e merceeiro bom, oferecia pastilhas elásticas aos miúdos. Ela não.
UMA CASCA DE MELANCIA
A casca de melancia só está aqui para rimar com vazia. E já agora, acrescente-se um pouco de simbolismo, porque elogiamos o Outono e a melancia é um fruto de Verão. Restando só a casca, é porque o Verão acabou.
ATACADA PELO BICHO.
À noite, quando os carros passam espaçados nas traseiras da minha casa, as ratazanas aproveitam para atravessar a estrada. De dia não passam; não porque têm vergonha, mas porque têm medo. Ao contrário da galinha, não atravessam a estrada só para chegar ao outro lado. Atravessam porque, do outro lado – claro está –, estão tijolos empilhados que servem de porto seguro para a noite. E depois não sei para onde vão. Talvez para os barcos que estão estacionados no rio, na tentativa de chegar a algum destino exótico. Exótico, entendido à escala da ratazana.
 
Thursday, September 21, 2006
  Tratado de criatividade e ideias
Disseram-me, várias vezes, que não me faltavam ideias. Faltava-me método. É isso também que distingue um artista de um amador. Todas as pessoas têm ideias, piores ou melhores, mas têm ideias: literárias, musicais, imagéticas – paradas ou em movimento. A capacidade de as pôr em prática, de enveredar por um processo, com método, é algo que não está ao alcance de qualquer um. Porque dá trabalho.
Em várias discussões, sempre defendi que qualquer trabalho artístico residia mais no trabalho, no empenho – entenda-se, no processo – do que na criatividade, na inspiração. Porque a ideia a partir da qual se parte, raramente chega intacta ao final do processo. E poucos resíduos tem.

Nesta altura, após o primeiro bloco de texto, com dois parágrafos e cento e nove palavras, já percebi que esta entrada só será concretizada com muito trabalho, sem criatividade, pouco carnal e visceral, pouco de dentro e pouco da pele, para vir directamente da cabeça, do meu instrumento de racionalidade.
Escrevo furiosamente, ou faço uma lista de palavras difíceis de que gosto e tento ligá-las com linhas, como os jogos de crianças em que se tem que unir os pontos
Ou então recorro a mecanismos que sei que resultam, habitualmente intertextualidades, os meus preferidos. Mas dizem-me e escrevem-me a dizer que estou a perder a carnalidade ou a visceralidade, apesar de começar a pensar que até sem ideias consigo escrever três mil caracteres minimamente aceitáveis. Isto bem escondido e encapotado na minha muito fantasiosa consciência.
Contra tudo o que já foi escrito nesta entrada, aceito e assumo que escrevo com o corpo, que em dúvida, a melhor escrita é aquela que me sai da pele, dos sentidos, de todos. Metaforicamente, como gosto de dizer, “Não sejas tão literal.” Gosto da expressão “escrever com o corpo”, é extremamente sensorial e sensual. Isto até pode ser uma enorme contradição, eu não agir, criativamente, em conformidade com aquilo que defendo. Para não ser contradição, há um serão e uma manhã que estou sentado, a escrever sobre escrever, a meta-escrever, a esforçar-me para um dia poder dizer, sem vergonha, que sou escritor.

Nãos bolsos das minhas calças há papeis à quatro dobrados em quatro com ideias que surgem em qualquer lugar. As melhores ideias que tenho surgem sempre antes de dormir, naquela fase em que não percebemos onde estamos. As soluções para os grandes problemas no autocarro, na banheira, a conduzir à noite numa auto-estrada vazia. E encho papeis e papeis que se dobram e desdobram em post-it colados à volta do ecrã do computador.
As ideias surgem porque o nosso cérebro funciona, mesmo quando julgamos que está em descanso. Não me importo de ter ideias onde quer que seja, não interessa o lugar nem a situação. Desde que tenha um papel à quatro dobrado em quatro. Mas não confio, e por isso, contabilizado, demorai quase cinco horas a escrever esta entrada.

(Um amigo meu, uma vez, pintou um frigorífico com o corpo. Foi literal.)
 
Monday, September 18, 2006
  Com calma
Tudo começou dentro do carro a ouvir rádio. Com umas quantas palavras da locutora e uma enorme gargalhada a duas vozes. Dizia assim, “o diabo não existe, o diabo é deus com uns copos a mais – Tom Waits”. E com esta nos ficámos, atónitos. Foi ali para os lados de Olaias e Bela Vista, por baixo de um centro comercial com o Feira Nova, numas rotundas estranhas e grandes como entranhas de uma cidade impessoal. Nem vale procurar metáforas de bichos e entranhas para explicar como era o sítio onde passávamos de carro. Eram uns lugares estranhos, mais estranhos ainda que o amor.
Não sabia o que escrever e andava numa daquela compilações gigantescas de pensamentos que dão entradas enormes no blogue com parágrafos muito pequenos de uma frase só. De há uns dias para cá, andava com e sem vontade de ligar o processador de texto. Ligava o computador, ouvia música, enviava currículos, mas não escrevia. Uma ou outra linha, entradas pequenas de intertextualidades entre uma canção que eu gostava e o dia que estava. Fazia-o porque sabia que isso resultava e ainda que não fosse dos trabalhos mais felizes que tinha escrito, não ficaria mal na cadência do blogue, dada a tristezas e coisas foleiras, com muitas lágrimas por chorar. Foi assim, com deus a beber uns copos a mais, com a dor da saudade iminente a assombrar-me a trás de cada porta desta casa, que me sentei a escrever a centésima primeira entrada deste blogue. Com a tão pouco romântica música dos Yeah Yeah Yeahs. A música sempre foi muito importante, como em The English Patient.

E sentei-me a pensar que depois de cem entradas não era capaz de escrever mais. Talvez estivesse na hora de voltar a mudar de blogue, como se existisse uma barreira psicológica que se seguisse às cem entradas. Um pouco como os portugueses que não viajam porque têm a barreira psicológica de novecentos quilómetros para atravessar Espanha. Recebi mails a dizer que a minha escrita estava mais racional e menos carnal e visceral, como sempre tinha sido. Foi só um, mas foi como se tivessem sido muitos, porque há já muito que eu reconhecia isso sem o verbalizar. Acho que estava cansado de escrever com o corpo, queria escrever com objectos. Queria afastar-me de mim. Ou então estava apenas a fechar mais um ciclo criativo. Creio que os meus duram entre dois e três meses. Depois pausa. Depois mais dois e três meses. Pausa. E assim.
Li, estava a meio de escrever, I wanna be forgotten/And I don't wanna be reminded. Quis ser identificado com isto. Mas sendo o universo dos blogues um lugar de onanismo intelectual, seria falsa modéstia fazê-lo. Mais, a minha barba e desejo de ser escritor estão relacionados com uma vontade de não ser esquecido. Era uma falsa modéstia muito ingénua. “À eternidade”, e levanto o copo de vinho.
 
Wednesday, September 13, 2006
  Quarta-feira, dia cinzento
Hoje podia ser um dia como qualquer outro. Mas não é. Nem que seja por ser o único dia treze de Setembro que haverá no ano de dois mil e seis. E podia ser assim com todos os outros dias do ano. Mas não é. Só com alguns.
Então, é o único dia treze de Setembro de dois mil e seis e é uma quarta-feira; se fosse terça-feira era o dia da canção do Sérgio Godinho: amanhã que é quarta-feira/haja fogo outra vez. Hoje é amanhã e a chuva apagou o fogo. Quero fingir que há feira da ladra porque o dia que nasceu sem sol e ficou de chuva é um dia de tristezas e amarguras e almas amarguradas. Nunca versos foram tão bem escritos para um dia cinzento. Falta uma semana para o Outono e a rapariga/deixou no chão um lamento/que se ergue e gira/e roda com o vento/e rodopia/e navega/e joga à cabra-cega/é de nós todos/e a ninguém se entrega. Estes dias precedem muitas mudanças. Ninguém agarra o lamento nem por ele se interessa porque esperam ser felizes.
 
Monday, September 11, 2006
  O movimento pendular entre o bom e o mau
Não me lembro de chorar por estar triste. Choramos quando somos crianças porque isso é natural, é uma reacção que acontece. Ficamos calados, metidos connosco. Em adultos continuamos a chorar, conforme os bloqueios que fomos desenvolvendo durante a infância, adolescência e mesmo idade adulta. Acabamos por deixar de chorar, de rir, de muitas coisas que dificilmente são recuperáveis.
Muitas vezes escrevo sobre isto porque é um assunto porque é algo que ainda é muito presente para mim. A última vez que tinha chorado a sério tinha sido aos quinze anos. Fosse porque razão fosse, a partir daí desenvolvi um bloqueio que foi quase impossível quebrar. E tornou-se um tema de exploração recorrente.
Porquê? Porquê? Mesmo nos momentos em que me sentia mais triste não chorava e achava que não estava triste o suficiente. E assim durante tempo. É neste momento que entra o “até que…”, mas vou dar continuação ao suspense, há ainda algo que tem que ser dito: o ano que teve início há um ano atrás foi um dos piores anos da minha vida – salvo raras e honrosas – muito raras e por isso honrosas – excepções. Não entrando em pormenores e saindo desta cadência delicodoce e melodramática, chegou a uma altura em que não aguentei mais e um dia cheguei a casa e antes de conseguir iniciar o computador já estava chorar. Não esmurrei teclados nem atirei o ecrã do terceiro andar. Chorei. Mas sentia-me ridículo, tão ridículo. Não resisti a olhar-me ao espelho. E chorava ao espelho e tinha uma cara tão estúpida que só tive vontade de rir. E ri. Mas não estava feliz.

Há as coisas que se movem na linha ténue das dialécticas – se é que estas existem –, o amor por exemplo. Entre o romântico e o ridículo, entre a paixão e o ódio, entre o desejo e a repulsa. Não soube por portas e travessas, mas sim por janelas. Especificamente, uma janela no meu computador e umas quantas espreitadelas alheias por cima de um ombro. Não era segredo, mas eu não precisava de saber. Mas soube.
Há uma rapariga que conhece um rapaz. Estão na mesma casa por acaso: à noite ele despede-se dela com um beijo. No dia seguinte passeiam. Onde é que tinha sido o beijo? Passeiam durante o dia e à noite ele repete o beijo e ela puxa-o para dentro do quarto. Fazem amor a noite toda e no dia seguinte ele tem que apanhar o avião. Perde-o porque ficam a fazer amor. Ela diz que se sente que fizeram amor com ela, que não foi fornicar nem sexo. Foi amor, e que se sentiu mulher apesar da idade que tem. E mais não sei.
Lembrei-me disto porque quando o nosso amor está satisfeito e pleno, regozijamo-nos com o amor dos outros.
 
Thursday, September 07, 2006
  Conversas paralelas
Escrever é algo que se treina. Não se pode deixar de fazer para depois recuperarmos no mesmo ponto em que deixámos. Temos que olhar para tudo como situações passíveis de serem escritas. Não sou o primeiro a escrevê-lo e de certeza que não vou ser o último, mesmo que essa conclusão seja íntima. Regressei a Lisboa há pouco mais de vinte e quatro horas: no Martim Moniz encontrei um cheiro a relva molhada que não encontrei em mais lado nenhum; as conversas das pessoas que já consigo compreender. Quando estive em França, por muito que conseguisse compreender uma palavra ou outra, muito do que diziam era trabalho de invenção, o que tornava o mais banal passeio para comprar pão, num romancear metafísico que dificilmente conseguiria ordenar num papel ou num ecrã. Nunca tinha escrito tantos romances de duas personagens em tão poucos minutos.
Quando regressei a Portugal, conseguia perceber todas as conversas: desde a senhora que se queixava que o telemóvel estava sempre a tocar, das raparigas que tinha feito amor (?) pela primeira vez, as senhoras que comentavam que o irmão do Cristiano Ronaldo era drogado. Sinceramente não quero saber. Preferia não perceber nada do que dizem, continuar a ir onde quer que fosse e dizer “bonjour” e “merci” como hoje fiz com o condutor do autocarro. E devo ter ficado com um ar de turista tão marcado que um senhor me apontou o Museu do Azulejo, como se eu não tivesse passado por ele todos os dias durante um ano.
Era muito mais divertido inventar vidas para as pessoas do que sabê-las.

Regressado, perguntaram-me o que é que tinha feito durante um mês. Escrevi. Pensei. Há muito que não escrevia como escrevi. Disseram-me que algo parecia perdido, alguma magia. Suponho que não, porque acho que nunca a houve. Apenas fiquei mais consciente daquilo que estava a fazer. Posso ter ficado menos sensitivo naquilo que escrevo, mas cada vez mais sinto que as palavras estão no seu lugar e não são apenas palavras nem campos semânticos lineares. As interpretações que se podem fazer são para ser feitas e não são casuais, arbitrárias. Perde-se num lado ganha-se no outro. Ou isto ou aquilo. No fundo, tudo se resume às escolhas que fazemos.
Tinha, no entanto, tirado o mês para pôr as ideias no lugar mas fiz o contrário, Às vezes para se conseguir arrumar uma casa é necessário que também a consigamos desarrumar toda. Tantas vezes subi a montanha como a desci. Tantas vezes andei quilómetros numa direcção para nem sempre regressar pelo mesmo caminho. E agora? Agora não é nada. Trouxe um diário com mais páginas escritas, mais rapidez na mão e na caneta e menos nas teclas, um livro para rever, uma tese para escrever e tenho o coração mais cheio.
E agora? É gozar os vinte e quatro anos com tudo isto.
 
Friday, September 01, 2006
  Trabalho de férias
Epístola
It’s all very well
Learning poetry by heart
But it doesn’t mean that we have to live like poets
– The French

Introdução
Nos últimos três dias, que correspondem aos últimos três dias do mês e aos últimos dias em Grenoble reuni vários pensamentos que fui escrevendo. Às vezes frases, outras vezes pequenos textos e sensações. Dos vários que escrevi, tentei desenvolver, mas nenhum permitia um grande desenvolvimento. Nem eu me sentia capaz de o fazer.
A vida de qualquer pessoa divide-se entre a esfera pública e a esfera privada. Nunca tive problemas com essa divisão, até começar a escrever um blogue e um diário. Há mais lugares de escrita e nem sempre percebemos o que é que pertence a quê. Ou onde é que devia ser escrito. O que piora a situação: qualquer acto de escrita ser sempre um acto autobiográfico, porque assenta na experiência do autor.
Verdades, meias verdades, omissões e mentiras. O que escrevo de seguida está assente na minha experiência e na forma como aprendi a ver e apreender a realidade.

Parte Primeira
Se a experiência, quer seja de vida ou de outra coisa qualquer, é fundamental para a escrita (porque todo o acto de escrita é autobiográfico), porque é que eu insisto obstinadamente em não sair de casa?

Parte Segunda
Subi a montanha, escrevi quatro postais no topo e desci a montanha. Quando passei pelo correio, deixei-os endereçados a Portugal. Para quatro moradas diferentes. No dia seguinte, enviei o quinto.
Subi a montanha, sozinho. À minha volta, imensos desportistas, alpinistas, caminhantes, trepadores. Ouvia música, no meio da natureza e parava para fumar cigarros. Tossia muito, mas quando passavam pessoas ficava envergonhado e parava; não queria que me vissem o vício. Lembrei-me do Trainspotting: a determinada altura vão todos para o meio do nada, sobem uma montanha com um saco de plástico cheio de cerveja. A imagem é tão decadente quanto bela, rompe com qualquer normalidade (artisticamente falando). De certa forma eu era eles: no meio da natureza, fechava-me em mim e ouvia música, fechava-me nos meus ouvidos. Lembrei-me do filme porque entre a música e a cerveja, não distávamos muito. E apetecia-me estar embrutecido.
Tinha já andado alguns quilómetros quando me decidi a ainda subir a montanha. Estava no ponto de equilíbrio entre os quilómetros que andava e os cigarros que fumava. Anulavam-se, fiquei no zero. E parava para fumar um cigarro com o pretexto de escrever mais um postal.

Parte Terceira
Doem-me as pernas e dói-me a alma. Gosto dizer que me dói a alma porque quer dizer que não é dor, é apenas uma sensação. E não é palpável. Há já muito tempo que estou inquieto. Provavelmente desde que tive consciência de mim,
coisa estranha,
fiquei com vontade de dizer a muitas pessoas que gostava delas. De todas as pessoas a quem queria dizer que gostava delas, apenas disse a três: no entanto, acho que não compreenderam muito bem a necessidade que tive de lhes dizer isso.

Parte Quarta
It’s just a day like any other day
A beautiful day
For an accident, let’s say
– Zero 7
Sempre pensei que se me quisesse suicidar resolvia tudo primeiro. Diria às pessoas de quem gosto que gostava delas e às pessoas de quem não gosto que não gostava delas. No entanto, se resolvesse todas as minhas questões já não tinha vontade de me suicidar. E lembrei-me de chamar a essa sinceridade próxima do suicídio, sinceridade pura – uma espécie de altruísmo.
Isto tudo junto do supremo acto de egoísmo.

Parte Quinta
Because I am a gentle man
Think of me as just your fan
Who remembers every dress you ever wore
– The Magnetic Fields
Estou na lavandaria e tiro a roupa da máquina de lavar. No meio de camisolas grandes estão camisolas muito pequenas. E também cuecas de mulher. E um soutien. Enquanto arrumo a roupa no saco sinto-me feliz. Porque tomo conta de alguém e alguém toma conta de mim.

Conclusão
Às vezes acho que aquilo que escrevo é extremamente aborrecido e sem qualidade, especialmente quando penso que poderia escrever crónicas numa revista ou num jornal. Sinto que é como um céu cinzento num dia ventoso de Outono. Provavelmente estas dúvidas cerca da minha escrita são uma tentativa de me localizar.
Onde é que estou? Em Grenoble, a caminho de Lisboa via Paris. Onde é que estou? Em casa (You want me to come home. But I am home). Onde é que estou? No início.
 
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
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