Boletim Meteorológico do Amor
(No pau de chuva e no caleidoscópio solar a inigualável Joanna Newsom.)
As nuvens fecharam-se sobre o sol ainda o dia não tinha chegado à sua metade. Nasceu o sol sobre o rio, nasceu brilhante na manhã de Outono-quase-Inverno contrastando com o frio que pairava no ar. Viam-se os miúdos a ir para a escola a expirar o frio pelas suas bocas como se de fumo dos primeiros cigarros se tratasse.
Na paragem do autocarro, grupos de meninas a fazer vezes de mulheres comentavam os rapazes que passavam, olhando-os de alto a baixo, avaliando-os pelo seu desempenho no campo de futebol ou em jogos de força ou coragem. Eles passam como um desfile e elas ficam a olhar, a escolher, a combinar, tudo verbos no infinitivo, sem uma condição definida.
No metro um casal olha-se, não se beija. Olha-se. Naqueles segundos em que se olham, naquele momento acabaram de dizer um ao outro o quanto gostam um do outro. Naquele momento deixaram de ser ele e ela para passaram a ser eles. Quase chegam a perder a identidade naquele jogo de transmutação corpórea que acontece; ele passa pelo corpo dela e ela passa pelo corpo dele. Deixam de ser verbos, deixam de ser a terceira pessoa do singular, individuais, para passar a ser a terceira pessoa do plural, unos. Para eles, que suspenderam o mundo naquele olhar, que puseram tudo o que estava à volta num plano tão infinitesimalmente inferior, aquele olhar foi uma promessa de amor.
E à medida que o metro vai abrandando, chegando a uma qualquer estação terminal – tem mesmo que ser uma estação terminal – aproximam-se um do outro deixando o corpo ao sabor da travagem que vai acontecendo lentamente. E quando o metro finalmente pára os seus lábios já estão colados uns nos outros e fundem-se. As pessoas saem todas das carruagens e eles, eles, continuam lá, continuam no olhar que se transformou em beijo mas que ainda é um olhar, para dentro, com o sabor.
O sol que nasceu brilhante, algures no metro, desapareceu, dando lugar a nuvens carregadas. As pessoas correm nas ruas como se se desviassem dos pingos grossos, ziguezagueiam aleatoriamente fugindo como se de lanças se tratassem, ou estilhaços de granada, ou castigo divinal e divino.
E no meio de um parque, a descoberto, sentados num banco de pedra, um casal beija-se. Não sentem a chuva, não sentem o frio. Sentem-se. O seu beijo ultrapassa qualquer chuva, ultrapassa qualquer frio. Já é de noite e Outono e eles namoram-se e partilham-se, não importa a hora nem a chuva. Ela no colo dele, ele com as mãos enlaçadas na sua cintura.
«Durante o dia fez sol e chuva, por esta ordem. Durante o dia fez-se amor e desamor, sem ordem aparente.»