Fantástica Gramática Automática
Wednesday, June 28, 2006
  Partilhas e partidas
Da varanda da minha casa vi um miúdo a cair de bicicleta. Ri-me. A mamã disse-me que não nos devemos rir das desgraças dos outros, mas eu nem sempre fiz caso do que a mamã dizia. Também dizia, como acrescento a não rir das desgraças alheias, que se o fizéssemos provavelmente alguém se riria das nossas. Certo é que me ri e ainda o riso não tinha terminado já o miúdo estava de novo em cima da bicicleta a pedalar e tentar a proeza que o tinha deitado ao chão. Um braço esfolado e um joelho a sangrar. Isso depois cura-se em casa.
O J. disse-me, lembras-te quando caíamos assim e nos levantávamos logo de seguida. Igualzinho. E depois contou-me que há dias o irmão mais novo lhe apareceu em casa todo esfolado de umas voltas de bicicleta no largo ou na quinta, não sei onde se passou a acção. Falámos de quedas de bicicleta e proezas conseguidas e não conseguidas. Falámos de quedas e feridas, curativos e passeios. Acho que estávamos a falar da nossa vida, da sua totalidade até agora. Planos falhados, surpresas e tiros no escuro que acertaram em cheio e outros que nem sequer se aproximaram do alvo. Em momentos de menos de um minuto, resumimos a nossa vida um ao outro. Usando bicicletas, quedas, feridas, passeios e o irmão dele. E agora, passadas algumas horas dessa conversa, divido-a na vida, minha e dele. E nossa, como amigos de infância.

Apetece-me fumar um cigarro ao computador mas não me apetece que o cheiro se esconda no armário nem a cinza caia para cima do teclado. Nunca tive muitos ares de escritor de cigarro ao canto da boca: o fumo entra-me nos olhos e faz-me chorar, impede-me de escrever. Prefiro fazer uma pausa e ir à varanda. Porque não gosto de os ver esvair-se em fumo no cinzeiro que não tenho. De mais a mais, os cigarros de enrolar estão sempre a apagar-se, tinha que estar sempre de isqueiro em riste; e ainda tinha que os enrolar, essa é outra. Tanta confusão desconcentra-me e impede-me de escrever.
Em Londres, em Fevereiro, uma rapariga que já tinha ouvido falar de mim disse-me: pensava que tu eras muito calado e fumavas imenso, é assim que acho que são os escritores. Ri-me imenso e expliquei que não era escritor, era apenas pretensioso. Expliquei também que naquele dia estava especialmente falador. Em inglês, claro.
Acho que a mamã não vai gostar de ler que ando a fumar outra vez.
Nunca tinha escrito sobre a minha mãe referindo-me a ela como mamã. Rio-me ao escrever isto, porque me lembro sempre do vizinho do lado da minha tia que é só maluco e anormal – nas palavras da minha irmã e por oposição a uma qualquer doença mental que eu julgava que tinha. Tem quarenta anos, vive com os pais e quando se zanga diz, Foda-se mamã, foda-se! É por isso que eu me rio.

Voltei a escrever sobre o acto de escrever em mim. Recorro aos mesmos motivos, ao dia, ao autocarro, às pessoas com que me cruzo, às que conheço e às que ainda vou conhecer: porque só pelo facto de as imaginar começam já a existir para mim.
Vejo a minha escrita. Tem que ser melhor: olho para a minha escrita. Mais fundo: observo a minha escrita. Mais ainda: auto-analiso-me através da minha escrita. Nada de mau e nada de bom. Um pouco vazio, talvez. Mas a pretensão permanece.
Agora que está quase, vou só à varanda fazer aquela pausa.
 
Tuesday, June 27, 2006
  Rádio
Ainda estou a pensar no título. Sei tudo o que vem a seguir porque estou a escrever, estive a escrever. Sei, pelo menos, o fio condutor com que quero ligar as palavras. Outros títulos que me ocorreram seriam igualmente pertinentes. Mas decidi-me por este, simplesmente porque foi o primeiro em que pensei. Por ordem cronológica: partilha; auto-estrada.

Gosto que conduzir à noite. Gosto das luzes. Não há nada mais anónimo e solitário do que entrar em Lisboa, pela A1, ao princípio da noite, ao princípio do serão. À hora do início do cansaço. A ausência do barulho do rádio, os ouvidos a zumbir por horas e horas de barulho do motor, de rodas a carregar no alcatrão. E as rotações, mais altas, mais baixas, as ultrapassagens.
A estação de rádio que não se fixa num só ponto e vagueia no ar, nas ondas invisíveis que também nos atravessam o corpo. Não tinha pensado nisto quando comecei a escrever. A música do rádio atravessa o nosso corpo em ondas invisíveis. (Dá ainda mais validade ao título que escolhi.) Mas a antena não pára numa só música e desliza, esgueira-se para ali e aqui. O cansaço é tanto que mais fácil é desligar o rádio e esperar por Lisboa. E os ouvidos estão abertos e o cérebro fechado à cadência ruidosa das rodas sobre o alcatrão.
Os dedos soltam-se levemente do volante, já não há força. As mãos suam, mas o dia não estava quente. Por isso escorregam no volante. Caem no colo e voltam ao lugar. O carro não guina, não há ninguém na estrada, apenas umas luzes de presença bem lá longe. De janelas abertas está frio. De janelas fechadas está calor. O suor escorre pelo volante e pelos flancos. Não sei como esteve Lisboa, não estava lá para ver. Sei como estava à chegada de Sábado à noite: estava vazia de carros, fria de corpo e quente de espírito, insuportavelmente opressiva, como uma carga de chumbo em chuva.

No rádio que se liga começa a tocar uma canção familiar. Apenas uns toques de xilofone e ficamos em silêncio e damos as mãos. No Surprises, dos Radiohead. É ao mesmo tempo uma canção de adormecer e uma canção de tristeza. é uma canção das coisas de hoje: intoxicações de monóxido de carbono, empregos repetitivos, autómatos em centros comerciais, até o sorriso plastificado em botox. Não sei porque demos as mãos, mas soube-me bem dar as mãos a ouvir esta música. Precisava de sentir uma segurança de saber que não era assim. Que não estou intoxicado. Que não tenho emprego. Que nem sempre sorrio, mas quando o faço é genuinamente.
Senti um calor a subir quando dei as mãos. Um calor genuíno. Assim como o sorriso que esboçámos.
Nesse momento muitas pessoas anónimas partilharam connosco esse momento. Não o sabiam, mas estávamos todos ligados através da música que dura três minutos e quarenta e nove segundos. E nesse espaço de tempo, entrou em nós o espírito da vida moderna. Não, pós-moderna, que o modernismo já terminou.
 
Friday, June 23, 2006
  Tudo
Numa aula de filosofia um professor perguntou qual era o contrário de cavalo. Uma espécie de antónimo filosófico que fizesse com que os alunos se sentissem inteligentes e coniventes com a matéria. Égua, burro, mula, macho; em suma, equídeos. Todas as respostas estavam erradas e todas as respostas estavam certas.
O contrário de cavalo é não-cavalo.
Se ser cavalo é ser equídeo, as respostas que transcrevi estavam erradas. Se ser cavalo é ter quatro patas, mais animais estão abrangidos. E assim sucessivamente.
E maçã?
E automóvel?
E assim sucessivamente.
Não são cavalos nem equídeos nem têm quatro patas. São, portanto, não-cavalos. Ou seja, tudo.
O contrário de qualquer coisa é tudo. Que grande falácia.
 
Tuesday, June 20, 2006
  Citações devidamente identificadas comigo
Deixei a minha mente vaguear sem destino, esperando convencer-me que a inactividade era uma prova de que estava a juntar forças, um sinal de que algo estava prestes a acontecer. Durante mais de um mês, a única coisa que fiz foi copiar passagens de alguns livros. Afixei uma delas, de Espinosa, na parede: «E quando ele sonha que não quer trabalhar, não tem capacidade para sonhar que quer escrever; e quando ele sonha que quer escrever, não tem capacidade para sonhar que não quer escrever».
(…)
É possível que eu pudesse ter conseguido sair daquela indolência. Ainda hoje não sei se aquilo era uma condição ou uma fase passageira. Bem no fundo de mim mesmo, sinto que durante algum tempo estava completamente perdido, completamente desesperado por dentro, mas não creio que isso significasse que o meu caso não tinha remédio.
(…)
Se a sequência disso foi o surgimento das palavras, foi apenas porque não tinha outra escolha senão aceita-las, assumi-las e ir aonde queriam levar-me. Mas isso não torna as palavras necessariamente importantes. Tenho estado a lutar há muito tempo para dizer adeus a algo, e esta luta é tudo o que realmente interessa. A história não está nas palavras; está na luta.
Paul Auster in ‘A Trilogia de Nova Iorque’ (1985)

Quiz Kid Donnie Smith: I used to be smart, but now I'm just stupid.
William H. Macy in ‘Magnolia’ (1999)

No livro de bolso Arte de Viajar, Alain de Botton recorda a forma como Baudelaire se sentiu continuadamente atraído pelos portos e pelas docas, pelas estações de comboios, navios e quartos de hotel. Parecia sentir-se melhor, mais em sua casa, nos lugares de passagem, nas escalas das viagens. Nos instantes em que se achava «acabrunhado pela atmosfera de Paris», sempre que o mundo em que vivia lhe parecia demasiado monótono e pequeno, partia, partia então, «partia pelo amor da partida». E viajava. Viajava nem que fosse até um porto ou uma estação de comboios próximos. Aí chegado, deixava-se ficar na previsão das infinitas viagens, imerso nessa poesia «da partida» que demarcava a presença no mundo.
Existem pessoas assim. Que se aborrecem de morte em Nova Iorque, Seul ou Barcelona, que querem ir mais além, sempre mais, mais além, experimentando uma espécie de prazer, de profundo mas íntimo prazer, na simples antevisão da partida, na imaginação do momento de se lançarem ao caminho, na concepção das paisagens correndo sem cessar. Jamais saberão permanecer imóveis, esperando passivas, aceitando em silêncio os horizontes que não mudam.
Rui Bebiano in ‘A Terceira Noite’ (2006)
 
Sunday, June 18, 2006
  Osmose
Começou por ser a passada igual. Os passos. Os pés, as pernas. A música que eu ouvia no meio da rua: Solex, Snappy & Cocky. O ritmo dos nossos passos o mesmo, o comprimento de pernas igual. Era alta, estava calor e tinha o cabelo curto.
Soprou o vento o todo o corpo abanou. Distamos dez metros e eu vejo-a ao som da minha música. Parou para apertar um sapato e quando termina caminhamos lado a lado. Eu com a música, ela a dança-la. Passa dos meus ouvidos para o corpo dela através de uma corrente qualquer que nos liga, a altura, o cabelo curto, as pernas do mesmo tamanho, a passada igual e ritmada. O som da música. Vamos lado a lado e não nos atrevemos a olhar um para o outro.
Eu quieto, hirto, envergonhado, tenso. Ela bamboleia o corpo; não só a passada, os pés e as pernas, mas as ancas e o rabo dançam, movem-se e provocam. Estala os dedos e diverte-se.
Chegamos ao fim do quarteirão e paramos no semáforo. Está verde para peões. Fica vermelho e continuamos parados. Eu quieto e ela a dançar à minha música. Ficou verde e vermelho e verde. Passaram carros e carros. Camiões e carrinhas. E quando ficou o último verde que vimos juntos, arrancámos cada um para seu lado, como se a cor significasse uma partida de uma corrida. Fomo-nos afastando e desligando. Excepto a imagem da rapariga que tinha o cabelo curto, as pernas compridas e o passada do tamanho da minha.

Chamei-lhe Elisabeth por causa da música. E nunca existiu a não ser dentro da minha cabeça, na construção de uma pequena história/crónica/post que foi imaginado na saída do Metro de Saldanha, que demorou vinte minutos a escrever e tem quase trezentas palavras.
 
Thursday, June 15, 2006
  Chá de rua
A rua cheira a folhas de chá. De que chá? Do chá normal. Cheira a folhas de chá que deixaram de ser quebradiças e que agora estão moles e se colam às colheres. Choveu. A chuva foi a água a ferver que o mundo aqueceu na chaleira. A rua cheira a folhas de chá, as plantas mais comuns deitam cheiro, as mais raras recolhem-se na sua vergonha, exalando um cheiro de suor floral. Também cheirava a terra molhada. A chá de raízes e folhas e terra molhada.
Antes de sair à rua estava na janela. Olhava e deixava que uma goteira grande passasse gotas entre os meus olhos e os meus óculos. Era fresca a água. Cheguei-me um pouco ao lado. Fiquei a ouvi a mesma goteira a cair no chão de cimento. Um pouco mais à frente há uma horta. À chuva, de impermeável, uma senhora poda as plantas com uma tesoura do peixe. Nem olha, corta a eito. Espreita pelo rabo do olho quem do prédio está a espreitar à janela. As plantas não se importam. Corta as flores da roseira e deixa a planta ficar verde, unicolor. Debaixo do impermeável está vestida com uma bata e pensa que tem que ir para casa preparar o almoço para o homem, penso eu.
Agarro no guarda-chuva e saio. Instantaneamente pára de chover.

As ruas estão vazias e não chove. Não sei como levar o guarda-chuva. Passa de uma mão para a outra e não me serve de bengala. As ruas de Lisboa estão vazias. Os centros comerciais estão cheios e as pessoas não usam os guarda-chuvas e sabem o que lhes fazer porque os não trouxeram. Têm um ar feliz no ambiente quente: o ar está demasiado respirado.
Ando, passo atrás de passo à frente de passo, ando. Outra vez: ando, passo atrás de passo à frente de passo, ando. E mais: ando, passo atrás de passo à frente de passo, ando.
Um riso começa a crescer lá ao longe. Um riso cambaleante, como o corpo, titubeante.

O riso é acompanhado por um sorriso desdentado e podre. E uma garrafa de vinho parece que pode escorregar da mão a qualquer momento. Olha para todas as pessoas que estão paradas e bebe mais vinho. Não anda, arrasta-se e arrasta a sua fraqueza como se de força se tratasse. Não há quem aguente tão trágico destino. Ninguém sabe que destino foi esse. Mas foi trágico. Direito a luto breu e rosas negras. E a uma garrafa verde de vinho tinto, sorriso desdentado, pedinte de cigarros e desmaio no meio da rua, nas poças de águas nas irregularidades do alcatrão.
 
Tuesday, June 13, 2006
  Um: Etelvina e Thalia
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A determinada altura do ‘Horácio’ de Heiner Müller, há a seguinte frase: há muitos homens num só. Mas era uma mulher. E ia sentada à minha frente. Passei por ela e cheirava a rua, a caixotes do lixo e a debaixo de pontes. Tinha o cheiro dos pedintes e o ouro dos ladrões em brincos colares e pulseiras (Etelvina era da rua como outros são do campo/sua cama era um caixote sem paredes nem tampo).
Tinha o nome dela ao pescoço, como um cão. Não me lembro. Não me lembro porque lhe dei um nome mal a vi. Chamava-se Etelvina e com seis meses já se punha de pé. Tinha sido deixada num cinema depois da matiné. Tinha um ar de homem. A cara barbada e duas saliências no peito indicavam que era fêmea, desfaziam o engano inicial, quase era andrógina, andrógino. Lembrei-me instantaneamente de uma cantora e compositora, Thalia Zedek. Tinha o ar gasto pela heroína e a flacidez gorda de quem já não consome tantas drogas. Eram tão parecidas. Era também a Etelvina do Sérgio Godinho.
Há muitos homens num só. Mas era uma mulher, apesar do aspecto masculino.

Trazia óculos de sol que lhe escondiam a cara e já muitos dentes lhe faltavam à frente. Na fronte, cicatrizes. Não sorria e tinha um ar duro. Como os duros da rua do cinema. Um gorro que lhe tapava o cabelo e saia em pequenas farripas pelos lados, pouco lavado, pouco cuidado. Uma camisa de flanela aos quadrados, demasiado grande. Não era feminina nem gostava de ser mulher. Queria ser homem e não ter que se preocupar com as regras. Há muitos homen num só, mas era uma mulher que queria ser homem e era Etelvina e era Thalia e era ladra e pedinte. Era tantas coisas e cabiam todas num corpo.
Ia sentada no autocarro, à minha frente, num banco individual e provocava todos com uma expressão de desafio. Queria que os olhos fossem doces, mas só os imaginava violentos atrás das lentes escuras. Há muitos homens num só. Mas era uma mulher quer não gostava de ser mulher e talvez ainda existisse esperança. Quando abriu a boca, articulou sons com a respiração e saíram palavras, falou como se cuspisse; mas para dar o lugar a uma senhora que vinha com sacos das compras. O bem e o mal. Olhou para mim com desprezo por cima das lentes escuras. Baixei o olhar envergonhado. Com medo.
Saltei na paragem seguinte a todas as paragens. Caminhei muito lentamente para casa a olhar por cima do ombro.
 
Sunday, June 11, 2006
  Tantos defeitos
Depois de aceitar o pedido de casamento disse, És o projecto da minha vida.
 
Friday, June 09, 2006
  "Vamos?"
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Take me away with you.
Retirado daqui.
 
Tuesday, June 06, 2006
  As lágrimas que nunca choro
Há muito que não sentia um apertão no peito desta maneira. Há muito que não me sentia oprimido desta forma tão estranha, como se o ar fugisse de dentro dos meus pulmões e estes ficassem tão comprimidos que fosse impossível voltar a respirar. E pela primeira vez, lágrimas afloraram os meus olhos com a leitura.
Another piece of particularly bad news came later during the day. Several students riding a bus to school were assassinated in Dora area. No one knows why - it isn’t clear. Were they Sunni? Were they Shia? Most likely they were a mix… Heading off for their end-of-year examination - having stayed up the night before to study in the heat. When they left their houses, they were probably only worried about whether they’d pass or fail - their parents sending them off with words of encouragement and prayer. Now they’ll never come home.

Todos os dias morreu alguém no Iraque. Não foi só alguém. Foi uma quantidade enorme de pessoas conhecidas para pessoas desconhecidas e distantes de nós. Mas pela primeira vez senti uma proximidade.
Nos noticiários as bombas nos carros e as mortes começaram a ser tão comuns que já nem nos apercebemos: vemos e de seguida eliminamos a informação do cérebro. Ter-nos-emos acostumado tão rapidamente a lidar com a morte dos outros? Ou não a sentimos como morte simplesmente porque ocorre a muitos quilómetros de distância? Fico tentado a optar pela segunda, é longe, é distante, não nos interessa. São outros, não somos nós nem os nossos próximos. Mas são desconhecidos que têm familiares e conhecidos: não são anónimos, são pessoas. Eles também são nós. Como é que nos tornámos tão indiferentes?

Leio regularmente o blogue de onde tirei este excerto, ou dentro das possibilidades de escrita que a autora tem de lá escrever. Há alturas que passe meses sem escrever. No meu egoísmo, muitas vezes penso que foi apanhada pela morte, como muitas pessoas de quem fala no seu blogue. Mas depois retoma. E penso, felizmente que não morreu, sempre posso continuar a lê-la. É horrível pensar assim. Porque o que subjazia ao meu pensamento não era o facto de um povo inteiro estar a ser torturado e morto – literal e metaforicamente – mas sim o facto de eu poder ou não continuar a fazer as minhas leituras diárias.
Sei que foi por ter as minhas preocupações na ordem errada que este texto me deixou tão sensível. Não porque as crianças que morreram tivessem a hierarquia das suas preocupações invertida, mas sim porque não lhes ocorria que pudessem morrer num dia de exame. Não lhes ocorreu. Nesse momento eram alunos universais, globais, que como todos os alunos têm as preocupações académicas.
O sentimento deles era o mesmo que vai ser o meu amanhã, quando apanhar o autocarro, o metro e andar alguns metros até chegar à faculdade para fazer a minha apresentação. No fundo, no âmago e busílis da questão, éramos todos os mesmos.

Retirado daqui.
 
Monday, June 05, 2006
  Dez anos
Os pensamentos, muitas vezes, começam por apenas uma pequena frase. Que depois viam ficando na nossa cabeça, vai aparecendo aqui, ali, algumas vezes ao longo de alguns momentos. Então tudo começou – há cerca de dois anos – quando me disseram Andas a ouvir alguma coisa com menos de dez anos? Não, não andava.
Tinha combinado ir beber um copo com uma amiga minha, bem mais velha, que sempre me maternalizou com amor edipiano. E eu fazia as minhas descobertas musicais e partilhava-as. A música sempre foi muito importante para mim. Partilhava-as e começava a descobrir que o início dos anos 90, final dos anos 80, tinham sido de apogeu musical. Comecei a pensar que nasci dez anos mais tarde e aborreceu-me só descobrir uma parte muito interessante da música uma década depois desta ter acontecido.

Mas os pensamentos ligam-se uns aos outros, o conhecimento de algumas coisas também se vai ligando e dei por mim a ler sobre a morte do Grant McLennan. Em vários sítios. Conhecia o nome dos The Go-Betweens mas não fazia a menor ideia de quem seriam. Comprei o 16 Lovers Lane. Ouço repetidamente. Já não me podem ouvir a ouvir. Tenho que me refrear para não me aborrecer
Voltei a pensar na frase que me tinham dito há dois anos atrás. Continuo a descobrir música, todos os dias, por várias e diferentes pessoas, mas nunca para a frente, sempre para trás.
E claro, não sendo uma pessoa propriamente modesta, quando descobri o primeiro álbum dos The Stone Roses faria sentido que I Wanna Be Adored se tornasse no hino da minha vida. Assim como I Am The Resurrection. Porque são canções do eu eu eu eu eu eu eu.

Há muitas ramificações que me afastam do que me disseram. Em dois anos desde que ma disseram não pensei num só sentido, pensei em muitos. Porque tive muito tempo para pensar e remoer sobre ela. Também tenho quase a certeza que não era exclusivamente sobre música.
Posso tentar aplica-la a inúmeros aspectos da minha vida, mas fazê-lo seria devassar-me por completa. Fica a imagem de alguém que há menos de um ano começou a ouvir The Stone Roses e The Go-Betweens mas que acha que devia ter nascido dez anos mais cedo.
Ficam também como partes integrantes da banda sonora da minha vida. A vida não é nada de especial, mas acho que a banda sonora é.
 
Thursday, June 01, 2006
  O melhor momento do dia
Há aquele momento do dia. O dia parece ser limitado pelas horas dos relógios, pelas duas voltas que o ponteiro das horas tem que dar, pelas duas vezes que tem que passar pela casa dos uns, dos dois, dos três, dos quatros, dos cincos, dos seis, dos setes, dos oitos, dos noves, dos dez, dos onzes e dos dozes e temos um dia de vinte e quatro horas em que se multiplicou doze por dois.

É de noite. Às vezes é mais de noite do que noutras vezes: são vezes. Já não está calor, mas sabe bem ter a janela aberta, o cheiro da padaria na cave do meu prédio que me faz correr à cozinha e comer qualquer coisa. Mas é de noite. Faz-se silêncio na casa porque há pessoas que dormem. E as que ainda não dormem preparam-se para dormir, por isso é preciso não fazer barulho. Nem sequer os pés descalços podem andar rápido, fazem barulho quando se descolam dos tacos de madeira encerada. Fecho a porta do quarto.
Falamos minutos e horas, às vezes segundos mas não interessa. Falamos, estamos cansados, calejados. Mas falamos, ouvimos a nossa voz. Rimos e brigamos. Zangamo-nos e reconciliamo-nos. Prometemos tantas coisas que faremos quando estivermos juntos: umas faremos, outras não. Fazemos pirraças e rimos. Desejamos boas noites com muitas saudades e vamos dormir.

Menti-te. Depois não vou logo dormir. Achego-me à varanda, enrolo e acendo um cigarro clandestino. Há já muito que deixei de fumar. Mas ninguém me vê. Sento-me no chão e olho para o céu. Ontem vi duas estrelas, já sabia que hoje o dia ia estar assim-assim.
E saboreio-te, como se ali estivesses, como se estivéssemos os dois a partilhar esse cigarro clandestino das pessoas a quem dissemos que há muito que deixámos de fumar. E nessa altura já passou o melhor momento do dia, aquele em que falámos por segundos, minutos, horas. Não interessa. Tivemo-nos.
 
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
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