Fantástica Gramática Automática
Friday, February 24, 2006
  À espera da promessa
Estava parada no meio do jardim. Um jardim em que construções são as árvores e as flores as antenas; árvores de betão e flores de ferro, de metal ferrugento. Ela estava, olhos azuis enormes, presos num vazio infinito. Esperava e estava. Estava.
Estava frio e vento. Vento porque é Inverno e está um dia frio e vento porque estava numa paragem de autocarros e, na beira do passeio, sentia o vento que eles faziam à medida que paravam e arrancavam e passavam. E estava. Parecia que a cada autocarro que se aproximava, ela se ia lançar debaixo das suas rodas, do seu motor; mas não, ficava ali, olhos azuis enormes presos num vazio que também podia ser finito: o vazio dela era finito e com os olhos presos nele, tentava encontrar os seus limites ou fronteiras.

Estava de pé e não se mexia, impávida ao vento e aos autocarros: o cabelo, a cada violenta manifestação todo se revolteava, mas mal terminava, tudo voltava ao mesmo. Apenas semicerrava os olhos. Na mão direita segurava um ramo de uma flor qualquer, flores de plástico. Os olhos exprimiam um azul grande, uma azul de revolta que contrastava com o corpo que era de conformação. Segurava o ramo como se estivesse à espera que a pedissem em casamento. Mas ninguém pedia, passavam por ela e roubavam-lhe uma flor e iam-se embora.
Não importava que o ramo estivesse a ficar desmembrado e vazio, que faltassem flores e que parecesse desleixo, quem gostasse dela e quisesse casar com ela, fá-lo-ia com flores ou sem flores. E ficava ali, com o vento do vento e dos autocarros.
O espaço infinitesimal de tempo que passei por ela, espaço infinitesimal no espaço de um tempo gigante e infinito que não teve início nem nunca terá fim, olhou para mim e viu em mim quem lhe iria pedir em casamento, como viu no estudante de sete anos que corria à minha frente e no padre que placidamente punha pé à frente do pé para passar por ela e por mim. Não me detive mas li nos seus olhos um pedido, que eu a pedisse em casamento.

Quando regressei já lá não havia ninguém, alguém a tinha levado. E o vento há já muito que tinha parado. Ainda restavam algumas pétalas no chão, no sítio onde tinha estado, à espera que o vento do vento ou dos autocarros lhe trouxesse alguém e levasse as pétalas.
Levaram-lhe flores e levaram-na, mais os olhos grandes, uma promessa e um ramo de flores desfeito.
 
Thursday, February 23, 2006
  Sem título #3
You’ll be positive though it hurts
- A Better Son/Daughter

Rilo Kiley – The Execution Of All Things [2002]
 
Tuesday, February 21, 2006
  Ouvir com os ouvidos tapados
Vão à minha frente. Não quis olhar. Tento reprimir que os olhos olhem para os outros; vejo em cada gesto uma frase, em cada arquear de sobrancelhas um parágrafo inteiro. Entraram e ela vinha à frente e parecia que não vinham juntos, mas vinham e vestiam os dois, um casaco verde.
Não olhes, não olhes, não olhes, não oiças.
A posição dele é de quem a tenta convencer de alguma coisa, olho-a e acho que não é bonita, mas não quero saber disso. Estão zangados e ela está sempre à beira das lágrimas. A cada momento vejo o queixo a tremer, mas olham para mim e vêem que eu estou a ouvir e param. Mas não aguentam, voltam a esquecer que há mais pessoas à sua volta e retomam a discussão. Várias vezes durante a mesma frase, ela vira a cara para o vidro e observa-o no reflexo. E a expressão dele não muda e ela olha-o nos olhos, o queixo treme e as lágrimas quase que lhe afloram os lábios.

Passei na entrada do metro, na mesma em que entro todos os dias e o segurança estava fumar um cigarro. Olhei-o e ele não reparou em mim. Vejo-o todos os dias e ele também me vê todos os dias; mas eu sei que ele é segurança e que está a fumar uma cigarro e ele não sabe nada de mim, como não sabe da senhora que entrou três metros à minha frente que me empurrou para sair do autocarro primeiro e chegar três metros adiantada ao metro.
Tenho vontade de lhe desejar bom dia ou boa tarde. Já faz parte do meu imaginário diário em que todas as pessoas que eu reconheço também me reconhecem. Até os dois fulanos que vêm na mesmo último autocarro terças-feiras à noite. Tenho que me convencer que as pessoas não observam como eu observo engulo os bons dias e as boas tardes e nas terças-feiras as boas noites.

Mas não conseguir resistir a olhar e ouvir com os olhos.
E subimos e descemos e há os solavancos que os aproximam; ele tenta ainda dar-lhe a mão. Mas esta permanece como se nada lhe tivesse a tocar, como se estivesse ausentada da vida, como se a outra mão que lhe tocava não fosse fria ou quente ou carne. Mais longe do que não existir, era não estar lá. E a mão dela sentia que a mão dele não estava lá porque lhe não sentia nada.

E no momento em que as lágrimas quase caem em catadupa. São sustidas por um respirar fundo.
Nos meus ouvidos a Martina Topley-Bird cantava, close your eyes and see/when there ain’t no light.
 
Sunday, February 19, 2006
  Os dias assim
Hoje já choveu tanto e já fez tanto sol. Já andei em mangas de camisa na rua e agora tenho vestida uma quente camisola de lã. Hoje está o género de dias que me faz tremer as pernas, que me faz tremer de medo. Hoje está o dia que me faz querer sair de dentro do meu corpo, cortar toda a carne que existe e procurar algo mais profundo que as estranhas viscerais que sei que tenho, que sinto.

Lembro-me de ser mais novo e dias de sol e chuva ao mesmo tempo deixarem no meu corpo uma ansiedade que não consigo controlar; ainda hoje tenho alguma dificuldade em lidar com os dias assim. Li, por mero acaso, no blogue de outrem, uma frase de um dos meus filmes preferidos, Magnolia:
I used to be smart, but now I’m just stupid.
Sinto-me assim, de vez em quando, nos dias assim. Andava a vasculhar papéis antigos, assim como pastas no computador, dos tempos idos em que eu comecei a escrever; num espaço intermédio entre a altura em que os escrevi e agora, achei que não tinham valor nenhum e dediquei algum tempo a decidir se os queria no lixo ou se os queria manter. Decidi-me por esconde-los.
Descobri-os e reli-os. Ri-me. Acho que não foi um mau princípio. Estavam demasiado pesados, tinham nas suas palavras uma perpetuada e perpetrada morte emocional continuada. Gostei de alguns e de outros não, mas em todos via uma escrita demasiado emocional para poder considerar que tinha qualidade. A maioria fez-me sorrir, conseguindo lembrar-me das noites em que os escrevia, com a janela do quarto aberta, no Verão e os mosquitos a entrar. Dessas noites guardo a mesma ansiedade que guardo dos dias assim.

[Vou contar um segredo: o céu está tão cinzento e o rio que vejo da minha janela está tão revolto e verde que até tenho medo de sair do quarto.]

Mas não interessa o tempo que faz lá fora, nem a qualquer registo meteorológico. Queria encontrar aquilo que há dentro de mim, queria encontrar um caminho que soubesse que podia caminhar coma certeza de estar a fazer algo bem feito, com a certeza de estar a ser ouvido e lido naquilo que faço bem. Gostava de acordar e saber exactamente aquilo que tenho que fazer a e a forma como quero fazer.
Ainda não.

Por isso é que os dias assim e as noites quentes e insones me deixavam ansioso: porque nessas noites assistia-me ao espírito a razão de estar a fazer algo que não queria e não devia. Por isso a sensação de não aguentar mais e querer sair de dentro do meu corpo e não conseguir.
E hoje, senti a ansiedade vir. Ri-me para ela, sentei-me ao computador e escrevi. Depois disse para mim mesmo: «tu já sabias que isto ia acabar assim». A escrever.
 
Thursday, February 16, 2006
  Dois dias depois: o mesmo
She said: “Hey man
You’ll have to protect me”
I said: “Shut up girl,
You shouldn’t talk back”
– Zita Swoon

“Our Daily Reminders” in: I Paint Pictures On A Wedding Dress [1998]
 
Tuesday, February 14, 2006
  Cor do Calor
Embriaguei-me com as cores da cidade, com o calor do sol. Não resisti a olhar para os casacos cor de laranja, para as calças cor-de-rosa, tudo nas pessoas era de uma coloração que eu pensava desconhecer. Nunca tinha pensado que as cores fossem assim tão intensas, nunca pensei que a ausência de cor pudesse, depois, ter este efeito.
Descia aos tubos metropolitânicos para ir a um qualquer sítio; não sei se me lembro para onde ia, mas sei que não ia sozinho, lembro-me que me estranharam o silêncio – estranham-me sempre os silêncios. Olhava para as cores das pessoas, para as roupas berrantes que vestiam.

Quero lá saber que se vistam mal, quero é ver as cores.

Estava calor e fiquei sem companhia. Já sei onde ia, porque me lembro da relva verde de uma chuva de Inverno que não estava à espera desta súbita reacção do sol. E a relva cresceu de um dia para o outro e era de tarde e algumas gotas ainda brilhavam. Tudo tinha demasiada cor para os meus olhos. Olhavam-me na rua como quem olha um tonto que está maravilhado com tudo o que se passa à sua volta, imagino que tivesse um sorriso imbecil estampado na cara, como quem descobre as cores, como quem sente o calor na pele, como se tudo isto fosse demasiado novo e fosse demasiado sinestético e quinestético para ser suportado por um único corpo.
Deixei-me estar a respirar a toada primaveril no meio do Inverno no meio de uma jardim de relva no meio da cidade. Lembrei-me dos parques de Berlim, e das tardes soalheiras, lembro-me de olhar para as pessoas e querer se como elas, feliz, com a preocupação de não me ter que preocupar com nada.

Três pré-adolescentes passam por mim e riem-se; não me importo que isso aconteça, guardo dentro de mim um segredo tão grande que poucos são capazes de imaginar. E prossigo o meu caminho, comigo, contigo e com o nosso segredo.

Vivi o calor do regresso e do tempo que depressa passou. Levanto a cabeça, faço tudo o que tenho a fazer e contínuo. Na direcção do meu calor, da minha cor.
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Sunday, February 12, 2006
  O sol
As pessoas que vão à igreja, as pessoas que acreditam.
O sol rasgou-me a cara. Ainda dormia, ou fazia que dormia porque há muito que a minha cabeça se rebelava contra o corpo que necessitava de ficar mais tempo deitado.

Tento, em vão, para a minha cabeça. Há demasiadas coisas para sintetizar, para analisar, para conseguir retirar algo delas.
Disseram-me que eu era uma pessoa muito boa, mas que queria ser mau, disseram-me também que não devia ser mau, que ser bom é melhor. Mas os maus é que costumam ser os fortes. Fiquei a querer ser mau. Já não é a primeira vez que me falam em bondade e em maldade, já não é a primeira vez que me deparo com o dilema que ser bom mas querer ser mau.
Senti que algo crescia dentro de mim. Não que tivesse existido uma ruptura genial ou um abalo brutal, simplesmente estava mais sensível as que as coisas se alterassem dentro de mim, estava mais atento aos sinais que aconteciam dentro de mim, mais atento às palavras que o vento me soprava perto dos canais, mais atento àquilo que as pessoas tinham para me dizer. No fundo, ousei olhar um pouco mais longe do que o meu próprio umbigo para descobrir que afinal, não é só dentro que nós que aprendemos, talvez até aprendamos mais quando o não fazemos.

Eram cinco da tarde e olhei para o céu de ontem. Olhei para todos os olhos cansados que deambulavam pela cidade. Olhei para o céu quase escuro e quase vi que nevava. Encontrava-se num limbo – no mesmo limbo que me encontro entre a maldade e a bendade – entre os primeiros flocos de neve e aqueles que não vão cair. E que não caíram.
Entrámos dentro de uma igreja com torres altas. Não que estivéssemos com uma disposição religiosa, pois ninguém o era, mas estávamos com frio. Vimos os vitrais e o altar. Tudo colorido e feliz, como se ali dentro a vida até fosse simples, como se o facto de se ter fé tornasse as coisas mais lineares, menos prismáticas. Talvez torne, não sei, nunca acreditei.
Num qualquer momento em que me andei pela igreja como alguém que procura algo que não quer encontrar, como alguém que procura, mas sem grande vontade ou entusiasmo. E não encontrei. Olhei para trás e encontrei-os todos sentados: não rezavam; mas estavam em silêncio, estavam concentrados em si mesmos, no seu cansaço, nos seus dias, nas suas horas, nos seus pais e nos seus filhos. Não tinham um ar triste nem feliz; não estavam tristes nem felizes, estavam ali.

Levantamo-nos e saímos, a missa ia começar. O céu ameaçador não deixava cair nem um floco de neve. Todos tínhamos estado em silêncio na igreja e todos tínhamos reflectido. E voltámos para casa.
Despedimo-nos na estação de comboios e foi assim.

O sol já não me rasga a cara porque se levantou para o céu. Sentia saudades deste calor de Lisboa, do sol que nasce e se reflecte no rio, duplicando a força com que entra dentro da minha janela.
Foram duas semanas cinzentas. Tive saudades de escrever. De me escrever e descrever.
 
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
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