Fantástica Gramática Automática
Friday, December 30, 2005
  O reflexo do cinzento
Estou sentado. Pela janela, da janela vejo as outras pessoas todas. O mundo para mim não passa de movimentos mais bruscos, de cores e vultos rápidos que passam na minha visão periférica. Olho as pessoas no reflexo cinzento das janelas do metro. Absorve-me a música que oiço, a música que trago presa aos ouvidos, a música que me desliga da terra que me arranca as raízes que me eleva. Ou rebaixa. Mas que me faz desaparecer. A música tem esse efeito. E as pessoas que observo, sem vergonha e sem medo, cobardemente, através do reflexo dos vidros. Há um casal, um ele e uma ela, perfeitos desconhecidos, que no embalar dos carris, da passagem das rodas metálicas nas irregularidades das junções dos carris, adormece, quase-adormece, encostando a cabeça ao ombro um do outro.

Sei que houve momentos em que as luzes se tornarem mais fortes, quase ofuscantes, quase cegantes. Fecham-se os meus olhos nas estações, nas paragens. Há o movimento que a minha visão periférica detectaria, se estivesse de olhos abertos. Porque quando os abro, há uma nova quantidade de pessoas diferentes dentro da mesma carruagem. Ela, que quase-adormecia, levantou-se e saiu, sem anda dizer: ao lado dele sentou-se outro ele que bate freneticamente o pé no chão, ao ritmo imposto de uma música que debita dos seus headphones para o resto da carruagem ouvir. Sinto que a minha perna também marca uma batida qualquer; paro. Forço-me a parar. Não quero ser igual a ele. Não quero ser igual a ninguém, não sei o que não quero ser.
Fecho os olhos numa paragem, a seguinte. Poderia ser a anterior se o tempo andasse para trás, mas o tempo anda para frente. E o metropolitano também. As portas fecharam-se a um homem ajeita o acordeão aos ombros. Coloca os dedos nas teclas para começar os primeiros acordes.

Deixo de ouvir a música, a minha. Chego a mão à mochila e desligo-a, deixo-me invadir pela música que sai do fole roto, do fole colado com fita-adesiva castanha. Mas o homem toca com virtuosismo, o homem toca com felicidade uma melodia infinitamente triste. Lembrei-me de uma outra melodia que fala de melodias,
I'm caught in the flow of sound
And you're just some melody

e de toda a beleza daquele momento que acontecia ali. Porque no fundo, quase ninguém sentia a felicidade triste daquele homem. E eu sentia-a na melodia que me arrepiava, que me deixava com pele de galinha. Quis deixar no copo que trazia uma qualquer quantidade absurda de dinheiro que não tenho.

Ficou a melodia e uma felicidade triste tocada num acordeão de fole roto e colado com fita adesiva-castanha. Se lhe tivesse oferecido um acordeão novo, uma roupa menos andrajosa, um banho quente, uma lâmina para se barbear, tinha perdido o seu encanto. Ficou a melodia. E o sorriso de barba-mal-feita a agradecer as moedas.
O escuro passou e o reflexo cinzento também, dando lugar a uma transparência colorida. Ele saiu da carruagem e entrou noutra. Para passar a melodia e a felicidade triste tocada num acordeão de fole roto e colado com fita-adesiva.
 
Wednesday, December 28, 2005
  Mar e Terra
Lembro-me, há alguns anos atrás, de ter uma amiga que era do Algarve. Estudávamos os dois no interior. Às vezes, quando passávamos grandes temporadas a estudar, sem ir a casa, era frequente ouvi-la dizer, «Tenho tantas saudades de ver o mar.» Sorria a estes devaneios, supunha que fossem desejos românticos, reminiscências de uma adolescência que termina mas à qual ainda nos apegamos. Desejos literários. Um romantismo meio piroso que todos sentimos e sentimos vergonha de admitir.

Pensei nisto porque todos os dias acordo e vejo o rio; não vejo o mar, mas vejo água em quantidade, vejo água como uma coisa natural que acontece à minha frente, que é bonito de se ver, ainda que recortada por enormes gruas de ferro e silhuetas de navios e contentores. E antes de chegar ao rio, o meu olhar tem que atravessar o bairro das vivendas. Mas chega ao rio, com todos os recortes, o meu olhar.
E dizia-me que tinha saudades de ver o mar. Da praia. Também gosto de praia, gosto da praia no Inverno. Tem um encanto qualquer, uma iminência de chuva e uma desolação fantástica; nesse momento, nesse cenário, talvez conseguíssemos explicar o que quer dizer saudade a alguém cuja língua não comporta esse vocábulo, esse significante com a significação que os portugueses lhe dão. Isso é o que mais se aproxima de saudade, com cada ingrediente, tristeza, melancolia, nostalgia e felicidade, tudo isso é saudade. Tudo isso é uma praia no Inverno, com a iminência de chuva e um café de madeira fechado. É Inverno.

Sinto saudades de terra. Sinto saudades do calor do chão. Sinto saudades das planícies. Sei que nesta altura, com o vento frio e a chuva miúda os campos vão estar todos verdes, que o amarelo romântico que outros vêem nas ondas do mar não existe.
Seria tolo se a alguém dissesse «Tenho saudades da terra.» Mas tenho.
Ela ia até à praia com o namorado, saboreava o mar nos lábios dele, saboreava o vento a passear de mãos dadas de luvas – porque tenho a certeza que isto tudo se passou em Novembro, num Outono muito, muito frio. E deixavam-se ficar abraçados: nessa altura o barulho das ondas tornava-se ensurdecedor e eles não precisavam de outro som para comunicar. Apenas do abraço para comunicarem, a pele a tocar-se através de toda roupa. E começa a chover e começam a correr para o carro; na praia ficam dois conjuntos de pegadas que são apagados pela chuva. E as pegadas apagam-se enquanto se beijam e os vidros embaciam.

Não há mar para me obliviar os sentidos. Não há mar para poder saborear nos lábios; ponho a língua de fora e passo-a nos lábios. Não sabe a sal. Não há frio húmido da praia no Inverno, não há o chuvisco suave. Há uma chuva forte.
O frio é seco e parece que se mete dentro dos ossos. Até os esqueletos tiritam de frio, nas salas de ciências da natureza nas escolas e nos cemitérios e igrejas. Mas é bom estar assim frio, pede um abraço.
 
Saturday, December 24, 2005
  Enmimesmado
Inventei esta palavra nova. Enmimesmado; quer dizer que ando a cismar em mim: um pouco como ensimesmado, mas em mim. Já registei a patente.
Porque sou eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu.

Saí pela manhã de casa, o céu ainda não tinha definido a sal cor, estava num tom de azul escuro, mas prometia ficar de cinzento claro. Ainda nem eram oito horas e eu já guiava. Passei Santa Apolónia, passei a Praça do Comércio. Encostei o carro numa paragem, eram sete e cinquenta e nove. Fiquei a olhar para um amontoado
[Bateram-me no vidro do carro, baixei o vidro e perguntei se se passava alguma coisa, «Não menino» respondeu-me a senhora velhinha «é que está em frente à paragem e o condutor do autocarro às vezes zanga-se e não queria que ele se zangasse com o menino, que é Natal». “Obrigado”, «Não foi nada menino, tenha um dia feliz.»]
de ferro que está bem no meio. Olhei para aquela que dizem ser a maior árvore de Natal da Europa. Tantos metros de ferro e aço, frios – assim apagados condiziam com o dia, frio e cinzento – como é que poderia ser uma coisa boa? Olhei outra vez, pelo retrovisor do carro, e senti que todo aquele ferro caía e esmagava o meu espírito. O que é que significa tanto ferro e aço amontoado? Nada. Tudo,
suponho que a sua simbologia fálica entusiasme as pessoas, os homens como extensão do seu apêndice e as mulheres como o prazer que a sociedade reprime. Mas como é Natal, as pessoas têm direito a ter esperança naquilo que mais desejam. Direito e dever.

Continuei a guiar pela cidade, uma cidade parada e adormecida, sem que ninguém aparecesse ao ouvir o motor do carro que passava, sem acelerar muito, não queria acordar ninguém. Em silêncio, em biquinhos dos pés. Continuei a subir até à Praça da Figueira: no meio de umas arcadas, um homem e uma mulher saíam de dentro de uns cobertores e de caixas de cartão, onde tinham passado a noite. Via-se na cara dele o resto do frio da noite, da madrugada. Movimentavam-se como se tivessem às costas um mundo inteiro, como se a alma também lhes pesasse – dos pobres de espírito e dos bem-aventurados é o Reino dos Céus. Querem morrer. O sinal vermelho virou verde e eu virei para a esquerda, para o Rossio.
O céu tinha-se decidido pelo cinzento claro que tinha vaticinado uma hora antes, quando tinha aberto o estore do quarto. E continuava sem haver ninguém nas ruas. Gosto da cidade adormecida, ou morta, mas silenciosa, apenas o barulho que eu faço a rasgar o silêncio, a atravessa-lo como a uma barreira de fumo. Na Avenida da Liberdade todos os semáforos estão verdes, carrego no acelerador quase a fundo e vou mesmo depressa, não sinto as irregularidades na calçada, ultrapassei a barreira do som e o Marquês de Pombal.
O liceu Camões e o Cinebolso. Arco do Cego. Praça do Chile. Morais Soares. Paiva Couceiro. Morais Soares. O coveiro que abre a porta do cemitério de São João.

Desliguei o carro e o rádio. A cidade começa a barulhar, fui acordar Lisboa. Volto a ligar o rádio e deixo-me adormecer à beira Tejo, deixo-me ficar a ver dançar as Tágides. Volto a Santa Apolónia. Eu comigo só, enmimesmado na manhã de um dia qualquer, de um dia igual outro Sábado. De uma manhã cinzenta clara.


Banda sonora para passear de manhã, numa manhã cinzenta clara, sozinho, de carro, em Lisboa:
Image hosted by Photobucket.com
This Mortal Coil, Blood, 1991

Image hosted by Photobucket.com
Air, The Virgin Suicides, 2000
 
Friday, December 23, 2005
  Encontrões e sabores
Hoje levei três encontrões. Três?! Trinta! Trinta?! Trezentos são demasiados, mas levei mesmo muitos encontrões.
As pessoas afadigavam-se em compras. Passa-se alguma coisa que eu não sei? Ganharam todos muito dinheiro e só a mim é que não me coube uma quota parte; deve ser isso. Na urgência de sair dos autocarros, dos metros, as pessoas não se sentam, permanecem todas junto das portas, comprimindo-se, empurrando, esmagando-se umas nas carne das outras e outras nos ossos das umas. E saem e entram. E empurram-se e são – não resisto à palavra nova – fucinheiras.
Mas não é mau que as pessoas se afadiguem a esborracharem-se outras nas umas, é da maneira que entro no autocarro, digo «Olá» ao condutor e percorro a coxia a escolher o lugar que mais me apraz. Sento-me ao lado de uma senhora velhinha que me sorri. Sorrio-lhe de volta, deve ser uma avó simpática, não tem ar de fucinheira – esta palavra tem mesmo ar de palavra portuguesa, o som.

Os olhos pesam-me com o sono e ainda estou em frente ao computador. Não resisto a ir buscar mais um chocolate ao frigorífico e ir comê-lo para a varanda. Restos de um vício: teria ido fumar o cigarro. Mas não, como um chocolate e as mãos ficam-me igualmente frias. Fico a ouvir o bairro silenciado pela hora tardia. No andar de cima alguém ainda está a pregar um prego, ouvem-se as marteladas que ecoam pelo prédio, que descem do quarto andar para o terceiro, segundo, primeiro, rés-do-chão; ouvem-se as marteladas que ecoam pelo prédio, que sobem do quarto andar para o quinto. Amanhã, a vizinha que ajudei a pôr a compras no elevador contar-me-á uma história daquela família e de como não mais dormiu desde que alguém se propôs a colocar o prego.
Não vamos acordar ninguém, vamos falar baixinho. Quase sussurrado.
Rio-me porque ouvi o prego enquanto comia um chocolate que me soube a um cigarro. Não é muito bonito, mas soube-me a cigarro: até a minha respiração com o frio parecia o fumo. Mas não era.
 
Friday, December 16, 2005
  O carrossel parado
A rua é fria a esta hora da noite. Os vidros do autocarro começam a ficar embaciados com as respirações que se juntam dentro dele; ainda que não haja muitas pessoas, há no ar um odor a álcool digerido, a suor, a vida que começou de manhã e só termina quando é quase outro dia. Há um cheiro a muitas pessoas que se comprimiram dentro do mesmo espaço e respiraram o mesmo ar.
O autocarro sobe aos solavancos, Morais Soares acima. Arranques de semáforos, arranques nas paragens e mesmo as mudanças de velocidade. Pessoas com sacos de compras e sacos de roupa e sacos que se acumulam nos bancos, numa hora em que poucas pessoas utilizam o autocarro. Todas têm um ar triste e desencantado, cinzento de cidade e subúrbio. Um solavanco e uma senhora com o saco quase do seu tamanho desequilibra-se e quase cai, agarrando-se no último instante às costas de um senhor que também se levantou. Sustentam-se os dois num equilíbrio precário e ela murmura «Desculpe».

Na paragem da Paiva Couceiro uma luz de feira popular. No meio de uma praça escura, no meio de um jardim sem luzes, no meio da sordidez escura, elevam-se luzes: luzes que iluminam toda a praça, luzes de neons em rosa e azul claro que se acendem e apagam cadenciadamente. As luzes vêem de uma caravana de farturas, que vende massa frita, churros e tudo aquilo que for frito numa tachada de óleo com uma semana e tiver que ser polvilhado com uma mistura de açúcar e canela. O autocarro pára e as algumas pessoas já estão e volta das luzes, parecem borboletas nocturnas a aproximarem-se da luz.
O condutor do autocarro demora mais tempo a fechar as portas, fascinado com a luz que alumia um pouco mais que caravana: iluminam-se os que se aproximam da caravana, os outros, os medrosos, ficam na penumbra. Há muitas figuras que já comem farturas na escuridão. Chama-se a caravana “À Otário” e espalha a luz onde à escuridão, torna ainda mais sórdido o ambiente que se vive na praça, à noite. O autocarro arranca e a senhora que ainda há pouco quase tinha caído saiu e dirige-se à caravana.

Pede uma massa frita, das grandes, para adoçar a boca dos amargos de vida que foi tendo. Senta-se num banco, na penumbra, com o enorme saco de plástico ao seu lado. Olha as luzes e sente-se feliz: fosse a vida sempre assim, sentada num banco de jardim, a olhar as luzes que se acendem e apagam e a comer massa frita.
Não reconhece que, de vinte em vinte segundos, a cadência das luzes se repete. Olha fascinada para o rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul e para os espelhos que num fundo da caravana reflectem a escuridão da praça.

Termina a massa frita e limpa a boca no papel que sobrou. Levanta-se, faz um esforço enorme mas consegue levantar o saco do chão e apoia-o numa anca. E caminha até casa. Com os amargos de vida um pouco mais doces.
 
Thursday, December 15, 2005
  O cágado do Steinbeck
Sempre que não consigo escrever penso no andar do cágado que o John Steinbeck escreveu. Está-se ali imenso tempo a ler sobre o andar do cágado, as pernas, o pescoço. Quando não consigo escrever penso nas cosias simples em que se pode escrever, como o andar do cágado. E olho para as paredes que têm gotas a descer, para as formas flutuantes que o fumo do cigarro que repousa no cinzeiro cheio faz. Em que é que eu podia escrever.
Gosto de voltar ao fumo do cigarro, gosto ainda de imaginar que tenho um cigarro entre os dedos, que o enrolo com um pouco de tabaco, um filtro e uma mortalha e dou a primeira baforada. Lembro-me dos anéis de fumo que fazia; gostava de abrir a janela do meu quarto e ficar a fumar do lado de fora, com as mãos e a cabeça ao frio enquanto o fumo expelido dos meus pulmões se misturava com o ar quente que expirava e se misturava tudo na atmosfera fria da noite.

Deixei de fumar. De vez em quando vou para a varanda e vejo a minha respiração a misturar-se com o resto do ar. Noutra altura estaria a fumar, às vezes oiço a canção que costumava ouvir quando ia fumar para janela. Oiço-a e vem-me à mão o cigarro fininho, acabado de enrolar, colado com saliva, vem-me aos pulmões o fumo. Mas deixei de fumar.
O cágado do Steinbeck puxa lentamente os fios da criatividade e há mais algumas que foram escritas desde que ele começou. Neste exercício, já muitos temas explorei: o da gota de humidade, os das teias de aranha e hoje mesmo tinha pensado no sujo que está o chão do meu quarto; quando me apoiei coma s mãos no chão e fiquei com as pontas dos dedos cheias de pó. E depois a mão completa.
Lembrei-me de falar dos dedos dos meus pés, mas são tão feios, quem é que quereria ler sobre eles?

Acabei por oferecer os louros ao justo tema vencedor, ao do Cágado, aquele que me acompanha ans horas difíceis, procurando e vasculhando gavetas e cómodas incómodas na minha cabeça: hoje lembrei-me do amor, mas sinto-me demasiado ansioso. Fica o cágado que continua a puxar lentamente o fio das palavras, como se fizesse um gigantesco colar de missangas e as tivesse a puxar, uma a uma. Uma palavra, uma sílaba e ideia. Fica assim por hoje.
 
Tuesday, December 13, 2005
  Bibliografia sumária
LODGE, David
1993 A David Lodge Trilogy: Changing Places, Small World, Nice Work. London: Penguin Books.

Não é raro começar pelo fim. Isto nem sequer tem uma ordem alfabética, simplesmente vou acrescentando à medida que me for lembrando. Mas começo pelo fim, porque neste caso parece-me que fará mais sentido. Este é o livro que estou a ler. Eu escrevi que faria mais sentido começar pelo fim, não ia começar no início e só no fim escrever o livro que andava a ler.
Agora que já está, que já comecei pelo fim, volto ao início.


MAGALHÃES, Ana Maria e Isabel Alçada
1982 Uma Aventura na Cidade. Lisboa: Editorial Caminho.

Acho que foi aqui que tudo começou, ou que me lembre, este foi o primeiro sem desenhos que li. Exceptuando algumas ilustrações, é justo afirmar que tinha mais letras que ilustrações.
Como muitas pessoas da minha idade, foi por aqui que se começou a ler, aqui e mais vinte e tal aventura, suponho que já se tenham aventurado quase cinquenta vezes, mas eu deixei de ler quase nas trinta aventuras e passados cinco anos. Aos onze deixei de ler os livros bem-aventurados. Comecei a ler com seis anos, quando consegui juntar as letras em sílabas, as sílabas em palavras, as palavras em frases, as frases em períodos, os períodos em parágrafos, os parágrafos em capítulos, os capítulos em livros; não era especialmente sossegado nem inteligente, era como um miúdo de seis anos é.
Mas via os meus pais, as minhas irmãs, todos de cabeças enfiadas dentro dos livros e ninguém queria brincar comigo. Raios! Agora quem enfia a cabeça num livro sou eu e já não brinco com vocês. Aha, hum… Ler não é assim tão mau. No final da tarde fui ter, orgulhoso, com a minha mãe: «Olha, olha, já estou na página quarenta.»


LOPES, Adília
2002 Antologia. São Paulo: Cosac & Naify Edições

NERUDA, Pablo
1974 Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

Nunca gostei muito de ler poesia, mas há poesia que nos lê a nós. Da Adília,
[…]
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
de como me sorrias
de como me olhavas
se os meus poemas
contribuírem para isso
são excelentes


Do Pablo,
[…]
Ahora, ahora también, pequeña, me traes madreselvas
y tienes hasta los senos perfumados.
Mientras el viento triste galopa matando mariposas
yo te amo, y mi alegría muerde tu boca de ciruela.

[…]

E não sou capaz de mais escrever. Às vezes sinto-me lido, devorado pelos poetas que se alimentam de mim.
E continuo a ler, a ler, a escrever e a ler e a escrever e a escrever
 
Saturday, December 10, 2005
  Tempo de Vida
Quantas vezes não ouvi o sol nascer no crepúsculo matutino? Ainda que assim estivesse a dormir. Foram alguns anos, multiplicados pelos dias de cada ano são oito mil trezentos e noventa e cinco dias. Mais os meses e dias, noventa e quatro: oito mil quatrocentos e oitenta e nove dias. Já vivi todos estes dias, talvez mais uns oito, ou sete, se contarmos com os anos bissextos.
Já vivi perto de nove mil dias, já vi perto de nove mil crepúsculos matutinos e vespertinos, já vi o sol-pôr atrás das nuvens sem dar conta que ele desaparecia. Já o olhei, nos últimos segundos, quando ele se esgotava na longitude do mar, quando não havia mais montanhas, quando não havia árvores. Os últimos segundos em que conseguimos perceber a Terra a mover-se, em que conseguimos realmente ver o movimento do sol a desaparecer.
A minha mãe conta-me uma história sobre mim: «Quando tinhas três anos perguntaste-me se já tinhas vivido mil dias. E eu respondi que sim, porque já tinhas vivido mesmo.» Três anos, mil e noventa e cinco dias. Por pouco tinha vivido mil dias, por três meses e alguns dias tinha vivido os mil dias que tanto ambicionava aos três anos. E dez mil dias? Lá para Janeiro de dois mil e dez chegarei a essa meta. E mais? Não sei.

Imagino-me em adolescente, quando me diziam com a arrogância dos trinta, cresce a aparece – como eu detestava essa arrogância que achava tão charmosa – devia ter respondido e eu já tenho cinco mil dias. Era uma forma airosa de responder, mas a verdade é que quando somos adolescentes não somos muito espertos nem airosos. Somos brutos e desengonçados. E de qualquer das formas, quem tinha a arrogância dos trinta, tinha também pelo menos mais quase seis mil dias de vida, cerca de dez mil novecentos e cinquenta dias. O que estava em causa era apanhar a pessoa despercebida e conseguir sair da argumentação enquanto a outra parte ainda estava submersa em contas mais ou menos exactas. Mas quando somos adolescentes somos um pouco estúpidos.
E o que mais me deixa furioso é que só passados quase dez anos é que consegui encontrar uma boa resposta.
 
Thursday, December 08, 2005
  Ecolalia
É tudo tão silencioso. Parece ser pecado encher o ar com som, mesmo quando há coisas importantes a ser ditas. Pára. Não, realmente não há nenhum som para ser ouvido, está tudo num silêncio absoluto. É tudo tão silenciosos que conversar tem que ser em surdina, murmurado, burburinhado, com a boca bem próxima do ouvido, como se de um segredo se tratasse.
Lisboa recuou um mês e uma semana. Não me espantaria ao passar o cemitério do Alto de S. João ou o cemitério de Benfica ou qualquer outro cemitério, procissões de flores e campas lavadas. Mas não é dia de lembrar os mortos. Apesar do silêncio que se espalha pelo ar, que carrega a cidade com chumbo, hoje é um dia para os vivos que parece que estão mortos.

O barulho de uma motorizada rompeu o silêncio da tarde. Numa casa afastaram-se umas cortinas para ver quem passava; apenas conseguiram ver a poeira que assentava depois da motorizada ter rompido o silêncio e o ar, com um barulho estridente, num movimento de fuga não calculado. E as cortinas afastaram rapidamente, como se à espera estivessem que a qualquer momento o silêncio religioso que se espalhou pela cidade fosse para ser rompido, quebrado e rasgado. Devolve as cortinas à posição original, largando-as ao ar, largando-as à mercê do peso da gravidade, regressando à camilha da sala, à televisão que passa um programa qualquer. O quê? O quê?
Ainda se sente no ar que recupera o silêncio a ultima estridência do barulho da motorizada e depois tudo regressa ao que era, tudo regressa esquecido do barulho.
É tudo tão silencioso.
É tudo tão silencioso.

No parque quatro velhos jogam à sueca. Um barulho gorduroso, em silêncio, porque a sueca é um jogo se silêncio. E não vale sinais.
Nem no parque os pássaros ousaram cantar. Não há pássaros. Não há nada, nem no céu um risco de avião atravessa o azul, rasga a imaculada uniformidade do meio-dia. Quem passa na rua anda como se andasse descalço, anda a levantar os joelhos bem alto para não fazer barulho na cidade silenciosa. Até a água das torneiras que cai dentro dos baldes no cemitério não faz barulho.
E é tudo tão silencioso.
E não há barulho nenhum e a motorizada ficou esquecida. Por descargo de consciência, as cortinas voltam a ser afastadas, não terá ido o diabo tecê-las e feito qualquer coisa que não deu fé. Não, o diabo não as teceu. E a rua continua vazia e em silêncio. Mas a motorizada há-de ter que voltar, ou então vai à volta.

É feriado e as pessoas fizeram o voto de silêncio. Não pode haver barulho, não vai haver barulho. Talvez a motorizada que já se aproxima outra vez, com a sua estridência.
Era tudo tão silencioso.
É tudo tão silencioso.
Antes e depois da motorizada passar.
 
Monday, December 05, 2005
  Fado de Xabregas
Há uma fila de pessoas que esperam a chegada do dezoito quarenta e dois cinquenta e nove. Há uma fila de pessoas que agora acabaram de acordar e beberam uma meia de leite e comeram uma bola de Berlim no café «O Caçador». Há remelas espalhadas nas caras das pessoas que ainda há vinte minutos atrás partilhavam o calor da cama. Acordaram e lavaram-se à gato, lamberam a cara coma água fria que brotava das torneiras velhas da casa de banho. E agora, olham-se a avaliam-se sem se verem, à espera do primeiro autocarro que vai chegar.
De uma janela do primeiro andar, alguém já rega as plantas, alguém já sacode os tapetes num início de manhã. Notam-se também os olhos de sono e as mãos ásperas, trabalhadoras. Veste, por cima da camisa de noite bordada do enxoval, uma bata de trabalho. Vira-se para dentro rapidamente, como se alguém a chamasse. Na paragem de autocarro as pessoas começam a acordar, a olhar para o relógio, agitam-se.

Há um terraço com cobertura que serve de centro de dia. Vejo os velhos que saem de casa a beber o seu café pingado de aguardente ou bagaço, pingado. Sentam-se e conversam. Conversam de quê? Nem eles sabem, as bocas abrem-se e fecham-se emitindo os sons que os vão mantendo vivos à força do movimento. Se acaso a boca se fechar de vez, se acaso não puderem regressar no dia seguinte, tem início a morte.
Um morreu ontem, no hospital, entubado. Os outros nada dizem a esse respeito, consideram-no alguém que deixou de vir jogar às cartas ou às damas, não falam nele. Falar em alguém que morreu é tornar real a morte, tornar mais visível a miserável existência que levam a cabo num terraço coberto que quando a chuva bate de lado fica alagado. Reprimem as lágrimas cerrando os lábios fazendo quase com que estes desapareçam. E permanecem em silêncio, nesse momento talvez desafiem a morte; e na missa do sétimo dia ousam proferir o seu nome. A morte já está mais afastada, já é seguro falar dele. Falar dele com pena a talvez uma lágrima seja permitida, um lamento antes da vida retomar ao normal, com mais um assento vazio no terraço coberto que quando a chuva bate de lado fica alagado.

Chegaram, um atrás dou outro, o quarenta e dois e o cinquenta e nove. Repartem-se entre os dois as pessoas que vão na direcção da Praça do Chile, da Ajuda e as que vão na direcção de Santa Apolónia até aos Restauradores. E à medida que os autocarros vão parando as vidas das pessoas vão-se desligando até ser cada uma um fio individual que fez um cordão na paragem de autocarro de Xabregas. Foram sem reconhecer as caras que vêem todos os dias, os mesmos semblantes ensonados que se queixam da lentidão dos autocarros, da senhora que sacudia os tapetes e regava as flores, dos velhos do terraço coberto.

E à noite os rostos cinzentos regressam mais carregados do ar saturado do autocarro de Inverno, das roupas das pessoas e das suas respirações. Dentro do autocarro os vidros ficam embaciados e na rua chove a bom chover, uma chuva batida. A umas quantas centenas de metros o rio está revolto, mas em Xabregas as pessoas querem entrar em casa. Não olham o rio e nem sequer o reconhecem.
A senhora acha que não merecia a pena ter regado as flores de manhã, agora que chove tanto. Os utentes olham para o céu e rogam que na manhã seguinte não chova, para não ficarem comprimidos numa única paragem de autocarro dividida em três carreiras. E um velho que sai do centro de dia escorrega a subir a escadaria íngreme da sua casa cai e parte o pescoço.
 
Friday, December 02, 2005
  Luzes e Aquecedores
Através das paredes finas ouvem-se os barulhos dos vizinhos. Ouve-se o babe que chora porque a mãe ainda não lhe deu a mamada de meio da manhã; ouve-se o quarentão com uma tosse quase tísica e se o silêncio fosse completo, ouvi-lo-ia também a acender o cigarro, o clique do isqueiro que se fechava. Uns quantos andares abaixo um cão ladra porque alguém abriu a porta de casa. Ecoam os latidos pelo prédio.
Se se espreitasse à janela, outros tantos prédios estariam assim, com paredes finas e sentimentos promíscuos. Colado à parede do quarto está a casa de banho do vizinho do lado, que cospe para o lavatório uma mistura branca de saliva e pasta de dentes. Alguém chama alguém para fazer não sei o quê. As vidas das pessoas passam as paredes das casas e se houvesse escuro absoluto, este seria quebrado pelas luzes que atravessam as paredes, de tão finas que são.

Abrem-se então os estores de uma janela sem cortinas de um quarto frio com uma cama sem lençóis.
Ouve-se dentro do quarto os gritos das crianças que estão a jogar futebol no pátio da escola primária no largo em frente ao prédio. Discutem por causa da bola que uns dizem que passou por cima da pedra e outros dizem que não, que a bola entrou dentro da baliza. Uma parte acaba por ceder e continuam o jogo. Mas agora está tudo tão em silêncio: não se ouvem barulhos do prédio, não se ouvem os gritos das crianças. Estará o mundo um modo pausa? Não, ainda agora saí à rua e ele girava em cima dos meus pés, eu só tinha que os levantar e rodar o corpo – norte sul este oeste – para a direcção que queria tomar. Andei durante a metade de uma hora e no meu estômago não levava nada, apenas a fome de viver. Olhava uma cidade meio estagnada no tempo, uma cidade onde vivi tão intensamente que acabei por esgotar os meus limites de vida. Vivi tanto e tão condensado, que acabei por sobrecarregar os sentidos e a memoria, acabei por querer esquecer porque é que tinha querido viver tudo dessa forma.
Na rua não se ouvem os barulhos dos prédios, não se ouve a vida dos outros, o aspirador, as luzes o aquecedor. Não se ouve a bofetada que cai na face da esposa que ousou desafiar o esposo, ainda que com só um olhar.

Na rua vejo uma vida demasiado lenta que já me pertenceu e que eu achei muito rápida, que senti dificuldades em acompanhar. Senti o ar fresco do vento que abanava as árvores e que soltava os pingos presos nas folhas.


De volta ao quarto, ao prédio igual a tantos outros. Os sapatos molhados de uma chuva que caiu algures a meio da meia hora que estive na rua. O coração dilacerado por um passado perdido e indelevelmente esquecido; um passado que aconteceu num presente tão rápido que nem se deu conta de ter passado.
E as luzes na casa ao lado e o aquecedor no andar de cima e o cão a ladrar e a bofetada a cair e a tosse tísica e o isqueiro e o bochechar depois de lavar os dentes.
 
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
2H 31 da Armada A Natureza do Mal A Origem das Espécies A Senhora Sócrates A Terceira Noite A Vida Breve Abrupto Albergue dos Danados Auto-Retrato Avatares de um Desejo B-Site Baghdad Burning BibliOdyssey Blogue Atlântico Borboletas na Barriga Chanatas Ciberescritas Cinco Dias CORPO VISÍVEL Corta-Fitas Da Literatura De Rerum Natura Devaneios Diário Divulgando Banda Desenhada Dualidade Ondulatória Corpuscular E Deus Criou A Mulher Estado Civil Estranho Amor French Kissin' Golpe de Estado Hipatia Ilustrações, Desenhos e Outras Coisas Insónia Irmão Lúcia Jardins de Vento JP Coutinho Kitschnet Kontratempos Maiúsculas Mas Certamente que Sim! Menina Limão Miniscente Mise en Abyme Miss Pearls O Cachimbo de Magritte O Insurgente O Mundo Perfeito O Regabofe Os Canhões de Navarone Pelas Alminhas Porosidade Etérea Portugal dos Pequeninos PostSecret Quatro Caminhos She Hangs Brightly Sorumbático Ter enos Vag s Terra de Ninguém Voz do Deserto Welcome to Elsinore Womenage a Trois
Blogtailors Cooperativa Literária Escritas Mutantes Exploding Dog Extratexto Mattias Inks Minguante mt design O Binóculo Russell's Teapot
A Causa Foi Modificada A Sexta Coluna Por Vocación Terapia Metatísica Tristes Tópicos
11/2005 - 12/2005 / 12/2005 - 01/2006 / 01/2006 - 02/2006 / 02/2006 - 03/2006 / 03/2006 - 04/2006 / 04/2006 - 05/2006 / 05/2006 - 06/2006 / 06/2006 - 07/2006 / 07/2006 - 08/2006 / 08/2006 - 09/2006 / 09/2006 - 10/2006 / 10/2006 - 11/2006 / 11/2006 - 12/2006 / 12/2006 - 01/2007 / 01/2007 - 02/2007 / 02/2007 - 03/2007 / 03/2007 - 04/2007 / 04/2007 - 05/2007 / 05/2007 - 06/2007 / 06/2007 - 07/2007 / 07/2007 - 08/2007 / 08/2007 - 09/2007 / 09/2007 - 10/2007 / 10/2007 - 11/2007 / 11/2007 - 12/2007 / 12/2007 - 01/2008 / 01/2008 - 02/2008 / 02/2008 - 03/2008 / 03/2008 - 04/2008 / 04/2008 - 05/2008 / 05/2008 - 06/2008 / 06/2008 - 07/2008 / 07/2008 - 08/2008 / 08/2008 - 09/2008 / 09/2008 - 10/2008 / 10/2008 - 11/2008 / 11/2008 - 12/2008 / 01/2009 - 02/2009 /