Fantástica Gramática Automática
Monday, November 07, 2005
  A casa da bruxa
A vizinha do segundo direito olha para o largo na esperança de saber o que nele se passa, para saber quais os carros que já saíram, para determinar quais as pessoas que ainda se encontram no prédio e quais as que já saíram. Os pretextos são sacudir a toalha da mesa, bater os tapetes, ou simplesmente estar a apanhar um pouco de ar fresco. De qualquer das formas, não perde pitada daquilo que se passa no largo. Um dia estica-se tanto, tanto, vem o Senhor C., o marido, por trás e pumba, empurra-a para baixo.
Até simpatizo com a D. C., é uma verdadeira matrona portuguesa, com direito a bigode e tudo. Era só disso que eu não gostava quando era mais novo: a minha mãe obrigava-me a ser simpático e tinha que lhe dar dois beijinhos. No fundo, eu era como todas as outras crianças, queria era brincar; mas como era tímido sorria e não tinha coragem de nenhum acto de rebeldia, dizendo que não dava beijinhos nenhuns. E acabava por sentir a roçar na minha cara, os pequenos pelos, quase invisíveis, mas ásperos.
No dia em que lhe ofereceram uma gata foi o delírio; suportava todos os beijos ásperos para poder brincar como o bichano, bichana, Tucha de nome. Era branca e não gostava muito de mim. Quando cresceu, ia para os nossos terraços e entupia o algeroz. Com bolas de pelo e bolas de merda. Durante muito tempo, a minha mãe e eu fizemos uma cabala, mil e tal formas de matar a gata, sem sermos notados. Um dia, sem nossa culpa, verdade, caiu do segundo andar, o segundo andar é alto, mas não morreu; gastou duas vidas, o segundo andar é mesmo alto, e nunca mais voltou aos terraços.

Nas noites de Verão costumávamo-nos juntar no largo dos meus avós; um largo grande, quase só com vivendas. As noites de Verão em grande grupo, quando ainda se jogava ao esconde, futebol, ou simplesmente se andava de bicicleta. Faziam-se enormes excursões aos grandes quintais das vivendas sessentistas. No canto do largo, a vivenda cor-de-rosa, um rosa escuro, avermelhado sanguíneo. A casa da bruxa, a casa do Sr. S. que nos roubava as bolas de futebol. Mas nem sempre o conseguia, uma ou outra vez, alguém, mais audaz, tinha coragem de entrar dentro do quintal e apanhar a bola. Que coroação de coragem e as histórias que contava: esqueletos, morcegos, caldeirões, homens dependurados, lobisomens e sarabandas. Ficávamos todos arrepiados com estas histórias de coragem, como se as aventuras do Indiana Jones estivessem à distância de uma vivenda.
Houve um grupo que ousou ir às traseiras; entraram pelo corredor da garagem, o largo ficou vazio. Cada um contava uma coisa que tinha visto, relatos arrepiantes de uma enorme aventura. Foi passada a noite, sentada no muro da D. A. a conversar sobre bruxas e fantasmas e caldeirões. No fundo, um salgueiro pode ser muitas coisas.
 
Comments:
toc toc toc! Pode-se?? Já vou entrando...vim pelo expresso velocidade pessoal, sem paragens em nenhuma estação ou apeadeiro, destino incerto mas prometedor :)

O imaginário infantil é a mais intensa das ficções. Na minha escola primária havia um morro muito íngreme que também originou muita fantasia macabra. E a adrenalina que aquilo dava, enquanto imaginávamos aquelas coisas??? !!!...Mas sem dúvida que o pior era dar beijinhos às senhoras de barba :)
Beijinhos e bons viagens neste novo canto
 
sou um bocado despistada e fiquei "à toa " aqui com uma coisa:ontem vim ler o teu blog e...não era este! ou era?estou mesmo baralhada...li o post que tinhas e que era muito bonito sobre um casald e 50 anos no metro e uma gota de suor ...hoje ia comentá-lo...ZERO, NÃO HÁ!

bem, comento este: também eu tive que dar beijinhos a amigas da familia e vizinhas com bigode...era um desespero..não imaginas o que eu detestava ter que "dar beijinho"...
 
Eu nunca beijei mulheres com barba! Era o que faltava. Recusei-me sempre a tal. Ouvia os putos maiores dizerem que depois ganhava-se o hábito e já não se queria outra coisa.

Além disso, as mulheres na minha família, nunca tiveram barba nem bigodes. E os meus pais nunca me obrigaram a beijar as vizinhas. De quem eu gostava mais de beijar eram as miudas da minha idade e até algumas mais velhas.

Também nunca tive medo de lobisomens, bruxas e esqueletos. Só uma vez é que na terra da minha mãe de noite ao pé do cemitério, íamos um grupo de miudos e um mais velho que se tinha adiantado, gritou quando passámos e eu mijei-me todo!
 
Eu nunca entupi o terraço, mas também estive lá. E não contámos histórias de fantasmas. já éramos grandes.. ;p
 
ou melhor, EU já era grande. E tu deste-me leite condensado :)
 
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