Chá de limão aldrabado
Quando a chaleira começou a apitar, mentira, foi quando a luz se desligou da kettle que soube que podia deitar a água a ferver para dentro da caneca onde tinha a infusão. Disse chaleira porque ainda me lembro de a ouvir apitar em casa dos meus avós, nos jantares de Domingo, onde se comiam torradas com chá de tília. O chá que bebo é um chá de limão aldrabado porque já não tenho vizinhos a quem roubar limões às tantas da manhã e deixá-los espalhados na cozinha. O chá de limão é de uma infusão – olha, rimei – não é original como o bacalhau pascoal – olha, rimei outra vez!
Retomando:
foi quando a kettle desligou a luz e deitei o chá na caneca com a infusão de chá de limão que respirei fundo. Tinha algum tempo para poder escrever, tinha algum tempo para me sentar ao computador e sentir os dedos pulsar as teclas livremente, mesmo que isso significasse duas rimas alimentares e uma inútil discrição daquilo que estive a fazer antes de me sentar ao computador. E o que estive a fazer não difere muitos das outras noites, o que é realmente interessante é que hoje pude sentar-me a escrever, pude deixar que os dedos pulsassem as teclas ao sabor de pensamentos, ao sabor de um suspiro profundo que soltei quando me senti em paz porque olhei para única fotografia que tenho na minha secretária, entre postais de pinturas da Frida Kahlo e de Geishas japonesas.
Mas calma:
antes de chegar ao suspiro. Desliguei as luzes das divisões que atravessava até chegar ao meu quarto que, tão rara é a vez que isto acontece, estava em silêncio. Não queria outra companhia senão os meus pensamentos e o suspiro e toda esta atmosfera de um sítio que construí. Senti que me misturava com as paredes, com os móveis, com a cadeira em que agora me sento, com os discos e filmes nas prateleiras, com os livros que mais gosto – que não pouca vezes fogem de um quarto para o outro da casa – com os frutos secos que comprei para ver o «Paris, Texas» antes de dormir; misturo-mo no meio disto tudo, diluo-me nas coisas que me fazem e me constroem. Até na infusão de chá de limão.
Fim:
e na paz da noite, de um suspiro de felicidade trazido de longe, de um chá que arrefece rapidamente. Hesito, ligo as «Copas» para um só jogo antes do final. Esperem. […] Desisti a meio, ansiava por este final. Porque tem que ser um final fantástico, um final com uma rima que não inclua nem chá, nem bacalhau. Tem que ser um fim assim:
sentei-me em frente ao computador, nem pensava no que escrevia, era tudo tão fluido como se estivesse destinado a ser assim desde sempre, sentar-me ao computador, ou em frente a uma folha de papel e escrever. E desistir nunca, hesitar, vá lá, mas tudo se resolve com uma xícara de chá.
(E o que escrevi é assim: «Quando a chaleira começou a apitar […] vá lá, mas tudo se resolve com uma xícara de chá.»)