Fantástica Gramática Automática
Wednesday, November 23, 2005
  Chá de limão aldrabado
Quando a chaleira começou a apitar, mentira, foi quando a luz se desligou da kettle que soube que podia deitar a água a ferver para dentro da caneca onde tinha a infusão. Disse chaleira porque ainda me lembro de a ouvir apitar em casa dos meus avós, nos jantares de Domingo, onde se comiam torradas com chá de tília. O chá que bebo é um chá de limão aldrabado porque já não tenho vizinhos a quem roubar limões às tantas da manhã e deixá-los espalhados na cozinha. O chá de limão é de uma infusão – olha, rimei – não é original como o bacalhau pascoal – olha, rimei outra vez!

Retomando:
foi quando a kettle desligou a luz e deitei o chá na caneca com a infusão de chá de limão que respirei fundo. Tinha algum tempo para poder escrever, tinha algum tempo para me sentar ao computador e sentir os dedos pulsar as teclas livremente, mesmo que isso significasse duas rimas alimentares e uma inútil discrição daquilo que estive a fazer antes de me sentar ao computador. E o que estive a fazer não difere muitos das outras noites, o que é realmente interessante é que hoje pude sentar-me a escrever, pude deixar que os dedos pulsassem as teclas ao sabor de pensamentos, ao sabor de um suspiro profundo que soltei quando me senti em paz porque olhei para única fotografia que tenho na minha secretária, entre postais de pinturas da Frida Kahlo e de Geishas japonesas.

Mas calma:
antes de chegar ao suspiro. Desliguei as luzes das divisões que atravessava até chegar ao meu quarto que, tão rara é a vez que isto acontece, estava em silêncio. Não queria outra companhia senão os meus pensamentos e o suspiro e toda esta atmosfera de um sítio que construí. Senti que me misturava com as paredes, com os móveis, com a cadeira em que agora me sento, com os discos e filmes nas prateleiras, com os livros que mais gosto – que não pouca vezes fogem de um quarto para o outro da casa – com os frutos secos que comprei para ver o «Paris, Texas» antes de dormir; misturo-mo no meio disto tudo, diluo-me nas coisas que me fazem e me constroem. Até na infusão de chá de limão.

Fim:
e na paz da noite, de um suspiro de felicidade trazido de longe, de um chá que arrefece rapidamente. Hesito, ligo as «Copas» para um só jogo antes do final. Esperem. […] Desisti a meio, ansiava por este final. Porque tem que ser um final fantástico, um final com uma rima que não inclua nem chá, nem bacalhau. Tem que ser um fim assim:
sentei-me em frente ao computador, nem pensava no que escrevia, era tudo tão fluido como se estivesse destinado a ser assim desde sempre, sentar-me ao computador, ou em frente a uma folha de papel e escrever. E desistir nunca, hesitar, vá lá, mas tudo se resolve com uma xícara de chá.

(E o que escrevi é assim: «Quando a chaleira começou a apitar […] vá lá, mas tudo se resolve com uma xícara de chá.»)
 
Comments:
A tua descrição sobre a xícara de café que ainda não bebeste porque já não tens vizinhos a quem roubar ananazes é fabulosa. O que está mesmo a mais é o "bacalhau pascoal"; é simplesmente IN-TRA-GA-VEL!! Por falares no "Paris-Texas"; aconselho-te vivamente o "Sesimbra-Cascais". Pesca-se por aí que é demais! Também rimei sem querer...


Texto muito giro!
 
é o eterno retorno...
 
...espero que sim....ontem o chá de limão-mesmo-limão ajudou....
 
Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]





<< Home
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
2H 31 da Armada A Natureza do Mal A Origem das Espécies A Senhora Sócrates A Terceira Noite A Vida Breve Abrupto Albergue dos Danados Auto-Retrato Avatares de um Desejo B-Site Baghdad Burning BibliOdyssey Blogue Atlântico Borboletas na Barriga Chanatas Ciberescritas Cinco Dias CORPO VISÍVEL Corta-Fitas Da Literatura De Rerum Natura Devaneios Diário Divulgando Banda Desenhada Dualidade Ondulatória Corpuscular E Deus Criou A Mulher Estado Civil Estranho Amor French Kissin' Golpe de Estado Hipatia Ilustrações, Desenhos e Outras Coisas Insónia Irmão Lúcia Jardins de Vento JP Coutinho Kitschnet Kontratempos Maiúsculas Mas Certamente que Sim! Menina Limão Miniscente Mise en Abyme Miss Pearls O Cachimbo de Magritte O Insurgente O Mundo Perfeito O Regabofe Os Canhões de Navarone Pelas Alminhas Porosidade Etérea Portugal dos Pequeninos PostSecret Quatro Caminhos She Hangs Brightly Sorumbático Ter enos Vag s Terra de Ninguém Voz do Deserto Welcome to Elsinore Womenage a Trois
Blogtailors Cooperativa Literária Escritas Mutantes Exploding Dog Extratexto Mattias Inks Minguante mt design O Binóculo Russell's Teapot
A Causa Foi Modificada A Sexta Coluna Por Vocación Terapia Metatísica Tristes Tópicos
11/2005 - 12/2005 / 12/2005 - 01/2006 / 01/2006 - 02/2006 / 02/2006 - 03/2006 / 03/2006 - 04/2006 / 04/2006 - 05/2006 / 05/2006 - 06/2006 / 06/2006 - 07/2006 / 07/2006 - 08/2006 / 08/2006 - 09/2006 / 09/2006 - 10/2006 / 10/2006 - 11/2006 / 11/2006 - 12/2006 / 12/2006 - 01/2007 / 01/2007 - 02/2007 / 02/2007 - 03/2007 / 03/2007 - 04/2007 / 04/2007 - 05/2007 / 05/2007 - 06/2007 / 06/2007 - 07/2007 / 07/2007 - 08/2007 / 08/2007 - 09/2007 / 09/2007 - 10/2007 / 10/2007 - 11/2007 / 11/2007 - 12/2007 / 12/2007 - 01/2008 / 01/2008 - 02/2008 / 02/2008 - 03/2008 / 03/2008 - 04/2008 / 04/2008 - 05/2008 / 05/2008 - 06/2008 / 06/2008 - 07/2008 / 07/2008 - 08/2008 / 08/2008 - 09/2008 / 09/2008 - 10/2008 / 10/2008 - 11/2008 / 11/2008 - 12/2008 / 01/2009 - 02/2009 /