Noite de dia e de noite
Chega o fim da tarde, a quase noite e a cidade torna-se laranja; porque o céu cinzento e nebulado transforma-se num céu reflector quando as luzes se ligam. Podia ser um céu de prata opressiva, mas suponho que as coisas também são aquilo que nós queremos que elas sejam. Daí que o céu podia vermelhar com o sol quente de Verão, podia acinzentar como hoje, que eu continuaria a sentir o mesmo.
Respiro com força o ar fresco deste fim da tarde que já se começa a confundir com o início de noite, uma espécie de hora das novenas. Sei que algures, nos confins do meu bairro, ainda há hora de rezar o terço, as horas mortas dedicadas aos rituais litúrgicos individuais. Uma espécie de conforto quente que entra dentro do coração das pessoas. Suponho que uma grande cidade seja apenas o aglomerar de pequenas cidades das quais não há uma fronteira definida. Podemos escolher um anonimato de uma grande cidade para depois compreender que continua a existir uma pequena mercearia onde podemos fazer compras às oito da noite, onde há pessoas que nos reconhecem e pelo simples facto de sermos reconhecidos, deixámos de ser anónimos.
Nas diferentes cidades de cidade onde escolhemos viver, somos anónimos, sim; mas há um local onde somos reconhecidos, onde, quer queiramos quer não, as pessoas esperam um padrão comportamental da nossa parte, mesmo que seja um padrão não muito bom.
Gosto das casas que circulam o meu prédio, como uma emboscada a um enorme paquiderme. No meio de vivendas ergue-se um prédio de cinco andares. Abro a janela e vejo vivendas, vejo pessoas a passear o cão, vejo pequenas hortas citadinas; vejo o rio, um pouco mais ao longe, tão cinzento, como um corredor de cimento que divide duas margens, como um nevoeiro intenso de mistificação e oclusão.
Olho o meu prédio; há muito que não o vejo luz natural. Saio de casa ao primeiro azular e quando regresso há muito que a negritude espacial, estrelar, desceu sobre as suas paredes. Entro em casa, no silêncio das respirações regulares que ecoam nos outros quartos.
Ouvir pessoas a dormir é como guiar de noite, há dentar de nós um instinto protector, algo que nos leva a sentir que outros estarão debaixo da nossa alçada, nem que seja por ouvirmos o seu sono, nem que seja por, num imaginário romântico e romanesco, sintamos que, por estar acordados, estamos menos vulneráveis.
E na enorme cama que se apresenta, deixo-me cair.