Ouço os carros a passar
Ouço os carros a passar lá em baixo, numa rua. Os carros passam e não sabem que algures, um andar acima deles, a uns míseros dois metros e pouco, alguém dedica muitos pensamentos a eles, que pretendem chegar a algum sítio, ou que pelo devaneio do momento guiam a olhar em frente, mas sem ver o que se lhes atravessa, sem reparar nos pequenos pormenores que enchem as cidades de sentimentos bons.
Quando era pequeno, lembro-me de ter oito ou nove anos, ia de carro com os meus pais. Não gostava particularmente de dormir, gostava de olhar pela janela, de perguntar sobre os sítios, os lugares, as pessoas, as fontes e os fontanários.
Uma vez ia em silêncio. Passámos num semáforo verde e estava um carro branco parado, com um senhor de bigode ao volante. Fiquei a olhar para ele, mesmo depois de termos por ele passado. Sentei e fechei os olhos, concentrei-me com força nos meus pensamentos: pensei no que ele estaria a pensar quando viu o carro cinzento dos meus pais passar. E se cada vez que isso acontecesse uma pessoa pensasse nos pensamentos de outra pessoa? Estávamos todos ligados numa imensa telepatia. Olhei para o céu e vi o risco de um avião. Pensei nos pensamentos dos passageiros.
Hoje aconteceu-me o mesmo, quando ouvi um carro passar na rua, sem saber se o condutor tinha bigode ou não, se era um carro branco ou não. Foi um barulho que ouvi, um pensamento que passei para a escrita.