Ecolalia
É tudo tão silencioso. Parece ser pecado encher o ar com som, mesmo quando há coisas importantes a ser ditas. Pára. Não, realmente não há nenhum som para ser ouvido, está tudo num silêncio absoluto. É tudo tão silenciosos que conversar tem que ser em surdina, murmurado, burburinhado, com a boca bem próxima do ouvido, como se de um segredo se tratasse.
Lisboa recuou um mês e uma semana. Não me espantaria ao passar o cemitério do Alto de S. João ou o cemitério de Benfica ou qualquer outro cemitério, procissões de flores e campas lavadas. Mas não é dia de lembrar os mortos. Apesar do silêncio que se espalha pelo ar, que carrega a cidade com chumbo, hoje é um dia para os vivos que parece que estão mortos.
O barulho de uma motorizada rompeu o silêncio da tarde. Numa casa afastaram-se umas cortinas para ver quem passava; apenas conseguiram ver a poeira que assentava depois da motorizada ter rompido o silêncio e o ar, com um barulho estridente, num movimento de fuga não calculado. E as cortinas afastaram rapidamente, como se à espera estivessem que a qualquer momento o silêncio religioso que se espalhou pela cidade fosse para ser rompido, quebrado e rasgado. Devolve as cortinas à posição original, largando-as ao ar, largando-as à mercê do peso da gravidade, regressando à camilha da sala, à televisão que passa um programa qualquer. O quê? O quê?
Ainda se sente no ar que recupera o silêncio a ultima estridência do barulho da motorizada e depois tudo regressa ao que era, tudo regressa esquecido do barulho.
É tudo tão silencioso.
É tudo tão silencioso.
No parque quatro velhos jogam à sueca. Um barulho gorduroso, em silêncio, porque a sueca é um jogo se silêncio. E não vale sinais.
Nem no parque os pássaros ousaram cantar. Não há pássaros. Não há nada, nem no céu um risco de avião atravessa o azul, rasga a imaculada uniformidade do meio-dia. Quem passa na rua anda como se andasse descalço, anda a levantar os joelhos bem alto para não fazer barulho na cidade silenciosa. Até a água das torneiras que cai dentro dos baldes no cemitério não faz barulho.
E é tudo tão silencioso.
E não há barulho nenhum e a motorizada ficou esquecida. Por descargo de consciência, as cortinas voltam a ser afastadas, não terá ido o diabo tecê-las e feito qualquer coisa que não deu fé. Não, o diabo não as teceu. E a rua continua vazia e em silêncio. Mas a motorizada há-de ter que voltar, ou então vai à volta.
É feriado e as pessoas fizeram o voto de silêncio. Não pode haver barulho, não vai haver barulho. Talvez a motorizada que já se aproxima outra vez, com a sua estridência.
Era tudo tão silencioso.
É tudo tão silencioso.
Antes e depois da motorizada passar.