Encontrões e sabores
Hoje levei três encontrões. Três?! Trinta! Trinta?! Trezentos são demasiados, mas levei mesmo muitos encontrões.
As pessoas afadigavam-se em compras. Passa-se alguma coisa que eu não sei? Ganharam todos muito dinheiro e só a mim é que não me coube uma quota parte; deve ser isso. Na urgência de sair dos autocarros, dos metros, as pessoas não se sentam, permanecem todas junto das portas, comprimindo-se, empurrando, esmagando-se umas nas carne das outras e outras nos ossos das umas. E saem e entram. E empurram-se e são – não resisto à palavra nova – fucinheiras.
Mas não é mau que as pessoas se afadiguem a esborracharem-se outras nas umas, é da maneira que entro no autocarro, digo «Olá» ao condutor e percorro a coxia a escolher o lugar que mais me apraz. Sento-me ao lado de uma senhora velhinha que me sorri. Sorrio-lhe de volta, deve ser uma avó simpática, não tem ar de fucinheira – esta palavra tem mesmo ar de palavra portuguesa, o som.
Os olhos pesam-me com o sono e ainda estou em frente ao computador. Não resisto a ir buscar mais um chocolate ao frigorífico e ir comê-lo para a varanda. Restos de um vício: teria ido fumar o cigarro. Mas não, como um chocolate e as mãos ficam-me igualmente frias. Fico a ouvir o bairro silenciado pela hora tardia. No andar de cima alguém ainda está a pregar um prego, ouvem-se as marteladas que ecoam pelo prédio, que descem do quarto andar para o terceiro, segundo, primeiro, rés-do-chão; ouvem-se as marteladas que ecoam pelo prédio, que sobem do quarto andar para o quinto. Amanhã, a vizinha que ajudei a pôr a compras no elevador contar-me-á uma história daquela família e de como não mais dormiu desde que alguém se propôs a colocar o prego.
Não vamos acordar ninguém, vamos falar baixinho. Quase sussurrado.
Rio-me porque ouvi o prego enquanto comia um chocolate que me soube a um cigarro. Não é muito bonito, mas soube-me a cigarro: até a minha respiração com o frio parecia o fumo. Mas não era.