Fantástica Gramática Automática
Saturday, December 24, 2005
  Enmimesmado
Inventei esta palavra nova. Enmimesmado; quer dizer que ando a cismar em mim: um pouco como ensimesmado, mas em mim. Já registei a patente.
Porque sou eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu.

Saí pela manhã de casa, o céu ainda não tinha definido a sal cor, estava num tom de azul escuro, mas prometia ficar de cinzento claro. Ainda nem eram oito horas e eu já guiava. Passei Santa Apolónia, passei a Praça do Comércio. Encostei o carro numa paragem, eram sete e cinquenta e nove. Fiquei a olhar para um amontoado
[Bateram-me no vidro do carro, baixei o vidro e perguntei se se passava alguma coisa, «Não menino» respondeu-me a senhora velhinha «é que está em frente à paragem e o condutor do autocarro às vezes zanga-se e não queria que ele se zangasse com o menino, que é Natal». “Obrigado”, «Não foi nada menino, tenha um dia feliz.»]
de ferro que está bem no meio. Olhei para aquela que dizem ser a maior árvore de Natal da Europa. Tantos metros de ferro e aço, frios – assim apagados condiziam com o dia, frio e cinzento – como é que poderia ser uma coisa boa? Olhei outra vez, pelo retrovisor do carro, e senti que todo aquele ferro caía e esmagava o meu espírito. O que é que significa tanto ferro e aço amontoado? Nada. Tudo,
suponho que a sua simbologia fálica entusiasme as pessoas, os homens como extensão do seu apêndice e as mulheres como o prazer que a sociedade reprime. Mas como é Natal, as pessoas têm direito a ter esperança naquilo que mais desejam. Direito e dever.

Continuei a guiar pela cidade, uma cidade parada e adormecida, sem que ninguém aparecesse ao ouvir o motor do carro que passava, sem acelerar muito, não queria acordar ninguém. Em silêncio, em biquinhos dos pés. Continuei a subir até à Praça da Figueira: no meio de umas arcadas, um homem e uma mulher saíam de dentro de uns cobertores e de caixas de cartão, onde tinham passado a noite. Via-se na cara dele o resto do frio da noite, da madrugada. Movimentavam-se como se tivessem às costas um mundo inteiro, como se a alma também lhes pesasse – dos pobres de espírito e dos bem-aventurados é o Reino dos Céus. Querem morrer. O sinal vermelho virou verde e eu virei para a esquerda, para o Rossio.
O céu tinha-se decidido pelo cinzento claro que tinha vaticinado uma hora antes, quando tinha aberto o estore do quarto. E continuava sem haver ninguém nas ruas. Gosto da cidade adormecida, ou morta, mas silenciosa, apenas o barulho que eu faço a rasgar o silêncio, a atravessa-lo como a uma barreira de fumo. Na Avenida da Liberdade todos os semáforos estão verdes, carrego no acelerador quase a fundo e vou mesmo depressa, não sinto as irregularidades na calçada, ultrapassei a barreira do som e o Marquês de Pombal.
O liceu Camões e o Cinebolso. Arco do Cego. Praça do Chile. Morais Soares. Paiva Couceiro. Morais Soares. O coveiro que abre a porta do cemitério de São João.

Desliguei o carro e o rádio. A cidade começa a barulhar, fui acordar Lisboa. Volto a ligar o rádio e deixo-me adormecer à beira Tejo, deixo-me ficar a ver dançar as Tágides. Volto a Santa Apolónia. Eu comigo só, enmimesmado na manhã de um dia qualquer, de um dia igual outro Sábado. De uma manhã cinzenta clara.


Banda sonora para passear de manhã, numa manhã cinzenta clara, sozinho, de carro, em Lisboa:
Image hosted by Photobucket.com
This Mortal Coil, Blood, 1991

Image hosted by Photobucket.com
Air, The Virgin Suicides, 2000
 
Comments:
Cá para mim, e pelo que se tem vindo a verificar em forma de crescendo nos últimos posts, tens é uma tara por velhas. Nunca me enganaste.
Tiago Silva
 
bem banda sonora à minha altura e profundidade de gosto acredita...depois disso só divine comedy ou tindersticks ou cocteau twins ou dead can dance...no carro na rua em casa onde for logo que seja eu e o som alone together!!! Boas Festas, bxox
 
Bolas! nesse circuito passaste mesmo à minha porta! Ainda não fui ver a árvore fálica...não me apeteceu.Tb me sinto particularmente emmimmemada (qto vou ter que pagar pelos direitos de autor?)nesta época do ano. Tal como tu não gosto do Natal e pior que tu: quase não recebo presentes.
Por isso não te desejo aqui "Boas Festas" , mas desejo-te muitos e bonitos presentes!Qto a não veres televisão , penso que não perdes nada.Sempre é melhor não ver TV, ir dormir cedo, acordar pela manhã e fazer desinspiradas "viagens na minha terra" que inspiram belos posts.
 
emenda: em mim mesmada =emmimmesmada (faltou um "s "lá em cima)
 
Entimesmada...
 
No teu percurso, estiveste próximo da Graça (que é o meu bairro) por duas vezes: Santa Apolónia e Paiva Couceiro.
Da próxima vez, de Santa Apolónia sobes a Sapadores e no largo, viras à esquerda. Entras directamente na Rua da Graça e pela linha do eléctrico, segues atá ao centro. Há ali uma mão-cheia de cafés e a animação é grande. Não tem é sítio para estacionares...
... mas talvez os bombeiros te deixem arrumar o carro no quartel.
 
Como se fosse possível convencionar sorrisos e gritos de alegria, não existem protocolos para que estes aconteçam espontaneamente, os sorrisos rasgados no rosto surgem de forma não planeada, a alegria incondicional invade-nos quando menos esperamos, não estão previamente agendados no calendário! Mas, mais que nunca, a sociedade necessita destes rituais para nos fazer crer que existe uma comunalidade, quando no entanto as pessoas sentem-se cada vez mais sozinhas numa ilha...
Cousteau, Nova Scotia
Mark Eitzel, The Ugly American
 
concordo absolutamente :)
 
Muito Bom!!!


Beijocass (Vou-te seguir de perto) :)
 
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