Fado de Xabregas
Há uma fila de pessoas que esperam a chegada do dezoito quarenta e dois cinquenta e nove. Há uma fila de pessoas que agora acabaram de acordar e beberam uma meia de leite e comeram uma bola de Berlim no café «O Caçador». Há remelas espalhadas nas caras das pessoas que ainda há vinte minutos atrás partilhavam o calor da cama. Acordaram e lavaram-se à gato, lamberam a cara coma água fria que brotava das torneiras velhas da casa de banho. E agora, olham-se a avaliam-se sem se verem, à espera do primeiro autocarro que vai chegar.
De uma janela do primeiro andar, alguém já rega as plantas, alguém já sacode os tapetes num início de manhã. Notam-se também os olhos de sono e as mãos ásperas, trabalhadoras. Veste, por cima da camisa de noite bordada do enxoval, uma bata de trabalho. Vira-se para dentro rapidamente, como se alguém a chamasse. Na paragem de autocarro as pessoas começam a acordar, a olhar para o relógio, agitam-se.
Há um terraço com cobertura que serve de centro de dia. Vejo os velhos que saem de casa a beber o seu café pingado de aguardente ou bagaço, pingado. Sentam-se e conversam. Conversam de quê? Nem eles sabem, as bocas abrem-se e fecham-se emitindo os sons que os vão mantendo vivos à força do movimento. Se acaso a boca se fechar de vez, se acaso não puderem regressar no dia seguinte, tem início a morte.
Um morreu ontem, no hospital, entubado. Os outros nada dizem a esse respeito, consideram-no alguém que deixou de vir jogar às cartas ou às damas, não falam nele. Falar em alguém que morreu é tornar real a morte, tornar mais visível a miserável existência que levam a cabo num terraço coberto que quando a chuva bate de lado fica alagado. Reprimem as lágrimas cerrando os lábios fazendo quase com que estes desapareçam. E permanecem em silêncio, nesse momento talvez desafiem a morte; e na missa do sétimo dia ousam proferir o seu nome. A morte já está mais afastada, já é seguro falar dele. Falar dele com pena a talvez uma lágrima seja permitida, um lamento antes da vida retomar ao normal, com mais um assento vazio no terraço coberto que quando a chuva bate de lado fica alagado.
Chegaram, um atrás dou outro, o quarenta e dois e o cinquenta e nove. Repartem-se entre os dois as pessoas que vão na direcção da Praça do Chile, da Ajuda e as que vão na direcção de Santa Apolónia até aos Restauradores. E à medida que os autocarros vão parando as vidas das pessoas vão-se desligando até ser cada uma um fio individual que fez um cordão na paragem de autocarro de Xabregas. Foram sem reconhecer as caras que vêem todos os dias, os mesmos semblantes ensonados que se queixam da lentidão dos autocarros, da senhora que sacudia os tapetes e regava as flores, dos velhos do terraço coberto.
E à noite os rostos cinzentos regressam mais carregados do ar saturado do autocarro de Inverno, das roupas das pessoas e das suas respirações. Dentro do autocarro os vidros ficam embaciados e na rua chove a bom chover, uma chuva batida. A umas quantas centenas de metros o rio está revolto, mas em Xabregas as pessoas querem entrar em casa. Não olham o rio e nem sequer o reconhecem.
A senhora acha que não merecia a pena ter regado as flores de manhã, agora que chove tanto. Os utentes olham para o céu e rogam que na manhã seguinte não chova, para não ficarem comprimidos numa única paragem de autocarro dividida em três carreiras. E um velho que sai do centro de dia escorrega a subir a escadaria íngreme da sua casa cai e parte o pescoço.