Luzes e Aquecedores
Através das paredes finas ouvem-se os barulhos dos vizinhos. Ouve-se o babe que chora porque a mãe ainda não lhe deu a mamada de meio da manhã; ouve-se o quarentão com uma tosse quase tísica e se o silêncio fosse completo, ouvi-lo-ia também a acender o cigarro, o clique do isqueiro que se fechava. Uns quantos andares abaixo um cão ladra porque alguém abriu a porta de casa. Ecoam os latidos pelo prédio.
Se se espreitasse à janela, outros tantos prédios estariam assim, com paredes finas e sentimentos promíscuos. Colado à parede do quarto está a casa de banho do vizinho do lado, que cospe para o lavatório uma mistura branca de saliva e pasta de dentes. Alguém chama alguém para fazer não sei o quê. As vidas das pessoas passam as paredes das casas e se houvesse escuro absoluto, este seria quebrado pelas luzes que atravessam as paredes, de tão finas que são.
Abrem-se então os estores de uma janela sem cortinas de um quarto frio com uma cama sem lençóis.
Ouve-se dentro do quarto os gritos das crianças que estão a jogar futebol no pátio da escola primária no largo em frente ao prédio. Discutem por causa da bola que uns dizem que passou por cima da pedra e outros dizem que não, que a bola entrou dentro da baliza. Uma parte acaba por ceder e continuam o jogo. Mas agora está tudo tão em silêncio: não se ouvem barulhos do prédio, não se ouvem os gritos das crianças. Estará o mundo um modo pausa? Não, ainda agora saí à rua e ele girava em cima dos meus pés, eu só tinha que os levantar e rodar o corpo – norte sul este oeste – para a direcção que queria tomar. Andei durante a metade de uma hora e no meu estômago não levava nada, apenas a fome de viver. Olhava uma cidade meio estagnada no tempo, uma cidade onde vivi tão intensamente que acabei por esgotar os meus limites de vida. Vivi tanto e tão condensado, que acabei por sobrecarregar os sentidos e a memoria, acabei por querer esquecer porque é que tinha querido viver tudo dessa forma.
Na rua não se ouvem os barulhos dos prédios, não se ouve a vida dos outros, o aspirador, as luzes o aquecedor. Não se ouve a bofetada que cai na face da esposa que ousou desafiar o esposo, ainda que com só um olhar.
Na rua vejo uma vida demasiado lenta que já me pertenceu e que eu achei muito rápida, que senti dificuldades em acompanhar. Senti o ar fresco do vento que abanava as árvores e que soltava os pingos presos nas folhas.
De volta ao quarto, ao prédio igual a tantos outros. Os sapatos molhados de uma chuva que caiu algures a meio da meia hora que estive na rua. O coração dilacerado por um passado perdido e indelevelmente esquecido; um passado que aconteceu num presente tão rápido que nem se deu conta de ter passado.
E as luzes na casa ao lado e o aquecedor no andar de cima e o cão a ladrar e a bofetada a cair e a tosse tísica e o isqueiro e o bochechar depois de lavar os dentes.