Mar e Terra
Lembro-me, há alguns anos atrás, de ter uma amiga que era do Algarve. Estudávamos os dois no interior. Às vezes, quando passávamos grandes temporadas a estudar, sem ir a casa, era frequente ouvi-la dizer, «Tenho tantas saudades de ver o mar.» Sorria a estes devaneios, supunha que fossem desejos românticos, reminiscências de uma adolescência que termina mas à qual ainda nos apegamos. Desejos literários. Um romantismo meio piroso que todos sentimos e sentimos vergonha de admitir.
Pensei nisto porque todos os dias acordo e vejo o rio; não vejo o mar, mas vejo água em quantidade, vejo água como uma coisa natural que acontece à minha frente, que é bonito de se ver, ainda que recortada por enormes gruas de ferro e silhuetas de navios e contentores. E antes de chegar ao rio, o meu olhar tem que atravessar o bairro das vivendas. Mas chega ao rio, com todos os recortes, o meu olhar.
E dizia-me que tinha saudades de ver o mar. Da praia. Também gosto de praia, gosto da praia no Inverno. Tem um encanto qualquer, uma iminência de chuva e uma desolação fantástica; nesse momento, nesse cenário, talvez conseguíssemos explicar o que quer dizer saudade a alguém cuja língua não comporta esse vocábulo, esse significante com a significação que os portugueses lhe dão. Isso é o que mais se aproxima de saudade, com cada ingrediente, tristeza, melancolia, nostalgia e felicidade, tudo isso é saudade. Tudo isso é uma praia no Inverno, com a iminência de chuva e um café de madeira fechado. É Inverno.
Sinto saudades de terra. Sinto saudades do calor do chão. Sinto saudades das planícies. Sei que nesta altura, com o vento frio e a chuva miúda os campos vão estar todos verdes, que o amarelo romântico que outros vêem nas ondas do mar não existe.
Seria tolo se a alguém dissesse «Tenho saudades da terra.» Mas tenho.
Ela ia até à praia com o namorado, saboreava o mar nos lábios dele, saboreava o vento a passear de mãos dadas de luvas – porque tenho a certeza que isto tudo se passou em Novembro, num Outono muito, muito frio. E deixavam-se ficar abraçados: nessa altura o barulho das ondas tornava-se ensurdecedor e eles não precisavam de outro som para comunicar. Apenas do abraço para comunicarem, a pele a tocar-se através de toda roupa. E começa a chover e começam a correr para o carro; na praia ficam dois conjuntos de pegadas que são apagados pela chuva. E as pegadas apagam-se enquanto se beijam e os vidros embaciam.
Não há mar para me obliviar os sentidos. Não há mar para poder saborear nos lábios; ponho a língua de fora e passo-a nos lábios. Não sabe a sal. Não há frio húmido da praia no Inverno, não há o chuvisco suave. Há uma chuva forte.
O frio é seco e parece que se mete dentro dos ossos. Até os esqueletos tiritam de frio, nas salas de ciências da natureza nas escolas e nos cemitérios e igrejas. Mas é bom estar assim frio, pede um abraço.