O carrossel parado
A rua é fria a esta hora da noite. Os vidros do autocarro começam a ficar embaciados com as respirações que se juntam dentro dele; ainda que não haja muitas pessoas, há no ar um odor a álcool digerido, a suor, a vida que começou de manhã e só termina quando é quase outro dia. Há um cheiro a muitas pessoas que se comprimiram dentro do mesmo espaço e respiraram o mesmo ar.
O autocarro sobe aos solavancos, Morais Soares acima. Arranques de semáforos, arranques nas paragens e mesmo as mudanças de velocidade. Pessoas com sacos de compras e sacos de roupa e sacos que se acumulam nos bancos, numa hora em que poucas pessoas utilizam o autocarro. Todas têm um ar triste e desencantado, cinzento de cidade e subúrbio. Um solavanco e uma senhora com o saco quase do seu tamanho desequilibra-se e quase cai, agarrando-se no último instante às costas de um senhor que também se levantou. Sustentam-se os dois num equilíbrio precário e ela murmura «Desculpe».
Na paragem da Paiva Couceiro uma luz de feira popular. No meio de uma praça escura, no meio de um jardim sem luzes, no meio da sordidez escura, elevam-se luzes: luzes que iluminam toda a praça, luzes de neons em rosa e azul claro que se acendem e apagam cadenciadamente. As luzes vêem de uma caravana de farturas, que vende massa frita, churros e tudo aquilo que for frito numa tachada de óleo com uma semana e tiver que ser polvilhado com uma mistura de açúcar e canela. O autocarro pára e as algumas pessoas já estão e volta das luzes, parecem borboletas nocturnas a aproximarem-se da luz.
O condutor do autocarro demora mais tempo a fechar as portas, fascinado com a luz que alumia um pouco mais que caravana: iluminam-se os que se aproximam da caravana, os outros, os medrosos, ficam na penumbra. Há muitas figuras que já comem farturas na escuridão. Chama-se a caravana “À Otário” e espalha a luz onde à escuridão, torna ainda mais sórdido o ambiente que se vive na praça, à noite. O autocarro arranca e a senhora que ainda há pouco quase tinha caído saiu e dirige-se à caravana.
Pede uma massa frita, das grandes, para adoçar a boca dos amargos de vida que foi tendo. Senta-se num banco, na penumbra, com o enorme saco de plástico ao seu lado. Olha as luzes e sente-se feliz: fosse a vida sempre assim, sentada num banco de jardim, a olhar as luzes que se acendem e apagam e a comer massa frita.
Não reconhece que, de vinte em vinte segundos, a cadência das luzes se repete. Olha fascinada para o rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul e para os espelhos que num fundo da caravana reflectem a escuridão da praça.
Termina a massa frita e limpa a boca no papel que sobrou. Levanta-se, faz um esforço enorme mas consegue levantar o saco do chão e apoia-o numa anca. E caminha até casa. Com os amargos de vida um pouco mais doces.