Fantástica Gramática Automática
Friday, December 16, 2005
  O carrossel parado
A rua é fria a esta hora da noite. Os vidros do autocarro começam a ficar embaciados com as respirações que se juntam dentro dele; ainda que não haja muitas pessoas, há no ar um odor a álcool digerido, a suor, a vida que começou de manhã e só termina quando é quase outro dia. Há um cheiro a muitas pessoas que se comprimiram dentro do mesmo espaço e respiraram o mesmo ar.
O autocarro sobe aos solavancos, Morais Soares acima. Arranques de semáforos, arranques nas paragens e mesmo as mudanças de velocidade. Pessoas com sacos de compras e sacos de roupa e sacos que se acumulam nos bancos, numa hora em que poucas pessoas utilizam o autocarro. Todas têm um ar triste e desencantado, cinzento de cidade e subúrbio. Um solavanco e uma senhora com o saco quase do seu tamanho desequilibra-se e quase cai, agarrando-se no último instante às costas de um senhor que também se levantou. Sustentam-se os dois num equilíbrio precário e ela murmura «Desculpe».

Na paragem da Paiva Couceiro uma luz de feira popular. No meio de uma praça escura, no meio de um jardim sem luzes, no meio da sordidez escura, elevam-se luzes: luzes que iluminam toda a praça, luzes de neons em rosa e azul claro que se acendem e apagam cadenciadamente. As luzes vêem de uma caravana de farturas, que vende massa frita, churros e tudo aquilo que for frito numa tachada de óleo com uma semana e tiver que ser polvilhado com uma mistura de açúcar e canela. O autocarro pára e as algumas pessoas já estão e volta das luzes, parecem borboletas nocturnas a aproximarem-se da luz.
O condutor do autocarro demora mais tempo a fechar as portas, fascinado com a luz que alumia um pouco mais que caravana: iluminam-se os que se aproximam da caravana, os outros, os medrosos, ficam na penumbra. Há muitas figuras que já comem farturas na escuridão. Chama-se a caravana “À Otário” e espalha a luz onde à escuridão, torna ainda mais sórdido o ambiente que se vive na praça, à noite. O autocarro arranca e a senhora que ainda há pouco quase tinha caído saiu e dirige-se à caravana.

Pede uma massa frita, das grandes, para adoçar a boca dos amargos de vida que foi tendo. Senta-se num banco, na penumbra, com o enorme saco de plástico ao seu lado. Olha as luzes e sente-se feliz: fosse a vida sempre assim, sentada num banco de jardim, a olhar as luzes que se acendem e apagam e a comer massa frita.
Não reconhece que, de vinte em vinte segundos, a cadência das luzes se repete. Olha fascinada para o rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul-rosa-azul e para os espelhos que num fundo da caravana reflectem a escuridão da praça.

Termina a massa frita e limpa a boca no papel que sobrou. Levanta-se, faz um esforço enorme mas consegue levantar o saco do chão e apoia-o numa anca. E caminha até casa. Com os amargos de vida um pouco mais doces.
 
Comments:
Precisamos tanto dos fritos com canela, como de quedas para seguir em frente.

Mas o que importa é se temos alguém que conte, ou alguém a quem contar a história...
 
Adocicar os amargos,
andar em 360 graus (tal e qual um carrossel)
erguer-se das quedas,
...a vida nunca pára, mesmo quando se anda em círculos!
 
Filha de beirões de terras que gelam quando o inverno aperta, a senhora vê-se criança, quando ia com o pai à cidade grande comprar as prendas de natal, para os avós e os primos; um cobertor de papa para a avó, um jogo de atoalhados para a prima que se ia casar no início do ano.

Essas doces lembranças que o tempo não apagou, fê-la pensar que podia ter ido para Paris se o casamento com o Joaquim, seu primeiro namorado, se concretizasse...

A "fartura" chegara ao fim, mas não a sua esperança... já tinha comprado tudo o que pretendia e amanhã, apanharia o combóio para ir à terra!

Beijo :)
 
Prefiro pensar num autocarro que continua cheio, mesmo depois de vazio. Prefiro gostar das particularidades menos agradáveis das coisas e das pessoas.
Quando alguém precisa da minha ajuda e me pede desculpas por isso faço questão de pôr o meu mais simpático sorriso e dizer: volte sempre! Mas é um sorriso tão desconfortável que antes queria diluir-me. Talvez deixar a senhora cair e rir-me às gargalhadas, na minha invisibilidade.
A posição de auxiliado é muito vulnerável e isso sente-se: obrigado. Mas se se pedir desculpas deixa de se ser inferior e passa-se a agressor arrependido, tão cheio de força e arrependimento.
.
 
A rotina, aquilo que se faz todos os dias... e os autocarros, locais de encontros e desencontros, instrumentos de passagens mais ou menos fugazes. Mas, além disso, há os sonhos, as vidas que se cruzam... mesmo diante de uma caravana de farturas. Perfeito.
 
Mais uma ficha, mais uma viagem...mas um dia nas nossas vidas...
 
E ja agora, que o Natal e 2006 sejam como mais desejas, é tudo o que te posso dar e desejar!!!

Mas que seja sempre assim, pois ás vezes o pessoal parece que se esquece ou não quer!!!

Cumprimentos mixed by Jameson 12 anos!!!
 
Morais Soares, Paiva Couceiro...conheço muito bem! Mas para adoçar os amargos de vida preferia os pasteis de nata quentinhos da "chaimite"!
 
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