O cágado do Steinbeck
Sempre que não consigo escrever penso no andar do cágado que o John Steinbeck escreveu. Está-se ali imenso tempo a ler sobre o andar do cágado, as pernas, o pescoço. Quando não consigo escrever penso nas cosias simples em que se pode escrever, como o andar do cágado. E olho para as paredes que têm gotas a descer, para as formas flutuantes que o fumo do cigarro que repousa no cinzeiro cheio faz. Em que é que eu podia escrever.
Gosto de voltar ao fumo do cigarro, gosto ainda de imaginar que tenho um cigarro entre os dedos, que o enrolo com um pouco de tabaco, um filtro e uma mortalha e dou a primeira baforada. Lembro-me dos anéis de fumo que fazia; gostava de abrir a janela do meu quarto e ficar a fumar do lado de fora, com as mãos e a cabeça ao frio enquanto o fumo expelido dos meus pulmões se misturava com o ar quente que expirava e se misturava tudo na atmosfera fria da noite.
Deixei de fumar. De vez em quando vou para a varanda e vejo a minha respiração a misturar-se com o resto do ar. Noutra altura estaria a fumar, às vezes oiço a canção que costumava ouvir quando ia fumar para janela. Oiço-a e vem-me à mão o cigarro fininho, acabado de enrolar, colado com saliva, vem-me aos pulmões o fumo. Mas deixei de fumar.
O cágado do Steinbeck puxa lentamente os fios da criatividade e há mais algumas que foram escritas desde que ele começou. Neste exercício, já muitos temas explorei: o da gota de humidade, os das teias de aranha e hoje mesmo tinha pensado no sujo que está o chão do meu quarto; quando me apoiei coma s mãos no chão e fiquei com as pontas dos dedos cheias de pó. E depois a mão completa.
Lembrei-me de falar dos dedos dos meus pés, mas são tão feios, quem é que quereria ler sobre eles?
Acabei por oferecer os louros ao justo tema vencedor, ao do Cágado, aquele que me acompanha ans horas difíceis, procurando e vasculhando gavetas e cómodas incómodas na minha cabeça: hoje lembrei-me do amor, mas sinto-me demasiado ansioso. Fica o cágado que continua a puxar lentamente o fio das palavras, como se fizesse um gigantesco colar de missangas e as tivesse a puxar, uma a uma. Uma palavra, uma sílaba e ideia. Fica assim por hoje.