Fantástica Gramática Automática
Friday, December 30, 2005
  O reflexo do cinzento
Estou sentado. Pela janela, da janela vejo as outras pessoas todas. O mundo para mim não passa de movimentos mais bruscos, de cores e vultos rápidos que passam na minha visão periférica. Olho as pessoas no reflexo cinzento das janelas do metro. Absorve-me a música que oiço, a música que trago presa aos ouvidos, a música que me desliga da terra que me arranca as raízes que me eleva. Ou rebaixa. Mas que me faz desaparecer. A música tem esse efeito. E as pessoas que observo, sem vergonha e sem medo, cobardemente, através do reflexo dos vidros. Há um casal, um ele e uma ela, perfeitos desconhecidos, que no embalar dos carris, da passagem das rodas metálicas nas irregularidades das junções dos carris, adormece, quase-adormece, encostando a cabeça ao ombro um do outro.

Sei que houve momentos em que as luzes se tornarem mais fortes, quase ofuscantes, quase cegantes. Fecham-se os meus olhos nas estações, nas paragens. Há o movimento que a minha visão periférica detectaria, se estivesse de olhos abertos. Porque quando os abro, há uma nova quantidade de pessoas diferentes dentro da mesma carruagem. Ela, que quase-adormecia, levantou-se e saiu, sem anda dizer: ao lado dele sentou-se outro ele que bate freneticamente o pé no chão, ao ritmo imposto de uma música que debita dos seus headphones para o resto da carruagem ouvir. Sinto que a minha perna também marca uma batida qualquer; paro. Forço-me a parar. Não quero ser igual a ele. Não quero ser igual a ninguém, não sei o que não quero ser.
Fecho os olhos numa paragem, a seguinte. Poderia ser a anterior se o tempo andasse para trás, mas o tempo anda para frente. E o metropolitano também. As portas fecharam-se a um homem ajeita o acordeão aos ombros. Coloca os dedos nas teclas para começar os primeiros acordes.

Deixo de ouvir a música, a minha. Chego a mão à mochila e desligo-a, deixo-me invadir pela música que sai do fole roto, do fole colado com fita-adesiva castanha. Mas o homem toca com virtuosismo, o homem toca com felicidade uma melodia infinitamente triste. Lembrei-me de uma outra melodia que fala de melodias,
I'm caught in the flow of sound
And you're just some melody

e de toda a beleza daquele momento que acontecia ali. Porque no fundo, quase ninguém sentia a felicidade triste daquele homem. E eu sentia-a na melodia que me arrepiava, que me deixava com pele de galinha. Quis deixar no copo que trazia uma qualquer quantidade absurda de dinheiro que não tenho.

Ficou a melodia e uma felicidade triste tocada num acordeão de fole roto e colado com fita adesiva-castanha. Se lhe tivesse oferecido um acordeão novo, uma roupa menos andrajosa, um banho quente, uma lâmina para se barbear, tinha perdido o seu encanto. Ficou a melodia. E o sorriso de barba-mal-feita a agradecer as moedas.
O escuro passou e o reflexo cinzento também, dando lugar a uma transparência colorida. Ele saiu da carruagem e entrou noutra. Para passar a melodia e a felicidade triste tocada num acordeão de fole roto e colado com fita-adesiva.
 
Comments:
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Como é que algo tão pouco palpável como a música, pode ter tanta ressonância em nós! Para mim são ilusionistas, quem faz e toca música, porque resigno-me a fazer parte daquela grande maioria apenas capaz de apreciar música. Como também reconheço virtuosismo a quem toca de um stradivarius ou a quem toca de um acordeão de fole roto e colado com fita-adesiva, desde que, por momentos, faça evaporar do nosso campo de audição os reflexos de cinzentos.
 
Let's do it serpentine, any time...
 
A música... é mágica. E mais não consigo dizer.
Bem dizes tu que esse acordeão, o homem q tocava o acordeão e a própria melodia q saía do acordeão não teriam tanto encanto se fossem... remendados. E essa é uma ideia q eu associo à própria vida. A vida nem sempre é tão agradável quanto gostariamos q fosse... No entanto, por muitos lamentos q isso nos provoque, se a vida fosse perfeita não teria o mesmo encanto. :)

Boas festas! *
 
És um viajante viciado. Nas coisas e nas pessoas. E na música triste com que alegras a tua escrita. Feita de acordes sentidos dos universos que te rodeiam. E não brinacas em serviço; escreves.


PS:... e até já rimas...
 
... "brincas em...", queria eu escrever
 
Uma vez falaram-me de um puto de Portalegre que estudava piano em cima de uma mesa, numas teclas riscadas a navalha. E isto porque, deste intrumento mudo ou extraordinariamente remediado, ele fazia, aparentemente, sair música. Imagino que me pudesse deixar com pele de galinha.
 
quando na carruagem de metro entra(m)o(s) romeno(s)(?) com um acordeão e um amplificador portátil , a tristeza ora se esfuma, ora se intensifica.A Música embala os nossos pensamentos e leva-os para onde quer.Gosto de musica nas carruagens do metro, menos , dos motivos que levam os músicos a ter que tocar nas carruagens do metro.O teu post dignifica-os. Há um que anda sempre na linha verde e que toca muitissimo bem
 
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