O reflexo do cinzento
Estou sentado. Pela janela, da janela vejo as outras pessoas todas. O mundo para mim não passa de movimentos mais bruscos, de cores e vultos rápidos que passam na minha visão periférica. Olho as pessoas no reflexo cinzento das janelas do metro. Absorve-me a música que oiço, a música que trago presa aos ouvidos, a música que me desliga da terra que me arranca as raízes que me eleva. Ou rebaixa. Mas que me faz desaparecer. A música tem esse efeito. E as pessoas que observo, sem vergonha e sem medo, cobardemente, através do reflexo dos vidros. Há um casal, um ele e uma ela, perfeitos desconhecidos, que no embalar dos carris, da passagem das rodas metálicas nas irregularidades das junções dos carris, adormece, quase-adormece, encostando a cabeça ao ombro um do outro.
Sei que houve momentos em que as luzes se tornarem mais fortes, quase ofuscantes, quase cegantes. Fecham-se os meus olhos nas estações, nas paragens. Há o movimento que a minha visão periférica detectaria, se estivesse de olhos abertos. Porque quando os abro, há uma nova quantidade de pessoas diferentes dentro da mesma carruagem. Ela, que quase-adormecia, levantou-se e saiu, sem anda dizer: ao lado dele sentou-se outro ele que bate freneticamente o pé no chão, ao ritmo imposto de uma música que debita dos seus headphones para o resto da carruagem ouvir. Sinto que a minha perna também marca uma batida qualquer; paro. Forço-me a parar. Não quero ser igual a ele. Não quero ser igual a ninguém, não sei o que não quero ser.
Fecho os olhos numa paragem, a seguinte. Poderia ser a anterior se o tempo andasse para trás, mas o tempo anda para frente. E o metropolitano também. As portas fecharam-se a um homem ajeita o acordeão aos ombros. Coloca os dedos nas teclas para começar os primeiros acordes.
Deixo de ouvir a música, a minha. Chego a mão à mochila e desligo-a, deixo-me invadir pela música que sai do fole roto, do fole colado com fita-adesiva castanha. Mas o homem toca com virtuosismo, o homem toca com felicidade uma melodia infinitamente triste. Lembrei-me de uma outra melodia que fala de melodias,
I'm caught in the flow of sound
And you're just some melodye de toda a beleza daquele momento que acontecia ali. Porque no fundo, quase ninguém sentia a felicidade triste daquele homem. E eu sentia-a na melodia que me arrepiava, que me deixava com pele de galinha. Quis deixar no copo que trazia uma qualquer quantidade absurda de dinheiro que não tenho.
Ficou a melodia e uma felicidade triste tocada num acordeão de fole roto e colado com fita adesiva-castanha. Se lhe tivesse oferecido um acordeão novo, uma roupa menos andrajosa, um banho quente, uma lâmina para se barbear, tinha perdido o seu encanto. Ficou a melodia. E o sorriso de barba-mal-feita a agradecer as moedas.
O escuro passou e o reflexo cinzento também, dando lugar a uma transparência colorida. Ele saiu da carruagem e entrou noutra. Para passar a melodia e a felicidade triste tocada num acordeão de fole roto e colado com fita-adesiva.