Baús, Tesouros e Afins
“I am thinking of your voice”
Começa o final de uma canção sem música com este verso, justamente na altura em que as minhas mãos caem sobre o teclado. Porque, assim como as fotografias guardadas, já não há caneta ou pena que me valha, apenas os meus dedos que repousam sobre as teclas e constroem palavras, à vezes inventadas, outras vezes – a maioria – palavras que foram já inventadas há muito tempo. Mas gosto de inventar palavras, mesmo que depois mais ninguém as use, gosto de as inventar da mesma forma que gosto de escrever, porque uma coisa não existe sem a outra, são a mesma, una e indissociável.
Há uma expectativa gorada no ar, uma forma de excitação quase audível nos regressos a casa. Mas o que é casa? Já não é um regresso a casa, mas sim uma ida a casa dos pais, ver como está a cidade que nos acolheu, o berço gigante da existência individual. Acabo por regressar sempre a este tema quando venho ao Alentejo, porque fica profundamente marcado em mim, como uma cicatriz que ainda não fechou e que nós continuamos a abrir.
Mas regresso ao Alentejo com a expectativa gorada no ar. Regresso porque sou filho da terra. E filho da terra puta. Mas cresce a sensação de expectativa gorada porque os regressos são um acumular de sensações desencontradas com aquilo que esperávamos encontrar, as pessoas, as pessoas e as pessoas. Filho da terra entre duas serranias, num vale escondido. Regresso sempre pela porta do cavalo, pela porta pequena. E sinto a expectativa gorada a apropriar-se da minha pela porque me arrogo a querer entrar de cabeça erguida anunciando novas que ainda o não são. Entro calado e saio mudo, na esperança que me dirigissem a palavra.
Os baús estão vazios e tesouros os não há. Afins, são as coisas que sempre levamos, afins ou enfins, e um silêncio gigantesco e a promessa de não regressar tão cedo. Porque talvez, da próxima vez, as expectativas não sejam goradas.
Mas o ar tresanda, uma pestilência que se cola às narinas e ao longo de todo o sistema respiratório, dificultando a respiração, anunciando uma morte há já muito esperada; e não há Fénix que nos falha, morre-se para os outros assim e somos apenas para nós próprios. Isto a propósito de muita coisa e de nada.
[E sim, continuo a pensar na tua voz, nas formas que ela toma e ganha dentro dos meus ouvidos, espalhando felicidade pelas sinapses, abanando-me deste torpor, arrancado ao marasmo preguiçoso. Na tua voz sussurrada e nos beijos matinais, cheios da orvalha nocturna e do amor saciado e iminente, sempre, em desvarios.]
Verso retirado de “Tom’s Diner”, Suzanne Vega – Solitude Standing [1987]