Corrente de ar e lágrimas
Ontem fechei os olhos e eles continuavam deitar lágrimas. Hoje fechei os olhos e eles continuavam a deitar lágrimas. Porque o meu ontem já era hoje. Não sei porquê. Sei o ontem e o hoje mas não sei as lágrimas. Não as reprimir e deixei-me dormir com pequenos carreiros que desciam pela minha cara e faziam duas covas molhadas na almofada.
Não me sentia triste. Sentia-me bem e dormir bem. Mas as lágrimas caíram e de manhã tinha dois carreiros salinos, um de cada lado da cara. Adormeci coma sensação que algo dentro de mim acontecia e eu não conseguia ter uma noção exacta do que era, mas que acontecia, acontecia! Talvez tivesse sido uma descompressão qualquer, de uma coisa qualquer. Ou então foi o fumo da noite, do passeio no Bairro Alto. Ou então foi só uma desculpa para poder deitar cá para fora lágrimas que quase-transbordavam há muitos anos.
[Acordei e estiquei o braço até à entrada e trouxe o telefone. Marquei um número que já sei de cor há muito tempo e estive a conversar e diziam-me,
- Estás com uma voz de acordar.
E estava com uma voz de acordar, porque só tinha tido tempo para esticar o braço e marcar o número que já seu de cor.]
Neste preciso momento caíram inúmeras folhas do plátano em frente à minha casa. Foi o vento que as levou e as leva não sei para onde, mas sei que vão na direcção do rio. Na minha imaginação romântica, vejo um vento de Sábado com sentimentos de Domingo que levas as folhas do plátano até ao cemitério de S. João e cada uma delas repousa em inúmeras campas, já que são inúmeras folhas, como se fosse o vento do dia cinzento de todos os santos a entregar as suas saudades aos mortos. Porque o vento já cá estava e viu-os nascer e viu-os morrer e o vento viu isso tudo e o vento leva as folhas castanhas secas do plátano até ao cemitério como flores primaveris e frescas que quis deixar.
Mais uma rajada de vento e inúmeras folhas que voam para inúmeras campas no cemitério de Benfica.
Choraria eu pelos mortos em que penso hoje? Pelos mortos que nunca conheci mas que estão sempre tão presentes na minha cabeça, que me habitam?
Mas chorava pela felicidade, pela descompressão de tudo aquilo que expurgo, que sai de mim como a peste, como as bexigas negras invisíveis que me toldavam a visão. O muco que me empastava o cérebro, que me prendia os movimentos e a inércia que me prendia. Chorava, não por vê-los sair, mas sim por vê-los sair de mim, por me sentir liberto.
Abri a boca e enchi-a com uma golfada de ar. Aprecia que os meus pulmões conseguiam encontrar e arrumar todo o ar que a minha boca insistia em mastigar para depois engolir. E depois soprei.
E Lisboa encheu-se de vento.