Fantástica Gramática Automática
Thursday, January 19, 2006
  Feliz é bom
Está frio e é de noite. Ou é de noite e está frio? Não sei saber qual deles é que veio primeiro, se o frio que entrou por dentro das camisolas ou a noite que há muito me ensombra os pensamentos e acções. Sei que é de noite e está frio e a rua mostra um alcatrão mais escuro, o escuro da água que caiu do céu mas já não cai. Está cada vez mais frio e uma mancha de gasolina mistura-se numa poça de água e transforma-se em muitas cores, em todas as cores.

De dentro de um restaurante sai um casal, vêem em silêncio, ele vem um pouco mais à frente que ela. São pessoas que se misturam no meio das outras pessoas, são aqueles a quem chamamos outros, que não sabemos distinguir dos demais. Não que não tenham a sua individualidade, mas porque como são eles também poderiam ter sido outros. Mas naquele momento, todos os outros são eles.
Ela lança os braços na cintura dele e dá-lhe um beijo no pescoço. E o casal sisudo, saído do restaurante, que podia ser qualquer outro mas é aquele ganha uma individualidade, ganha um sentido de vida e amor. Riem-se e ela morde-lhe uma orelha, continuam a rir-se em direcção ao carro; comunicam apenas com gestos e olhares, olhares de carinho e amor. Entram no carro,

(Há algo neste quadro que as palavras não conseguem captar, há um contexto frio de noite, de chuva e de ruas vazias e um casal, que não é outro, mas que só podia ser aquele, agora, vive uma paixão de adolescentes. Há alguém que os vê e apreende tudo, quase até o sabor do beijo que trocaram, o cheiro do perfume dela, as imperfeições da idade que se tornaram perfeitas. É tudo, tudo, tudo, tudo. Mas é deles, não meu, eu apenas vi. E registei, invejei.)

fecham as portas mas a luz lá dentro continua acesa, demora ainda algum tempo a apagar-se, nem se dão conta que alguém os observa, directamente, em frente, quase como um voyeur emocional que se apropria de tudo o que se passa à volta para seu próprio prazer. Nessa altura lançam-se nos lábios um do outro, sem querer saber se há alguma luz acesa. Lançam-se de boca semi-aberta, com a língua tocar a língua e com os cheiros a misturarem-se. A luz apaga-se e ele põe o carro a trabalhar. Liga as luzes que incidem em mim, com a violência de um palco, com uma exposição forçada que não queria. Ponho a mão à frente dos olhos, para me proteger da luz.
O carro arranca e pára num semáforo logo a seguir. Ela encosta a cabeça ao seu ombro. E vão assim, felizes.
Feliz é bom.
 
Comments:
Será que outro alguém te observava também, um pouco mais afastado, tentando entrar no teu sentido...?...

Naquele sitio do outro lado...
 
A tua história é um bálsamo para aquilo que hoje ouvi, da boca de alguém que já se esqueceu o que é ser feliz... podia-me ter lembrado de lhe dizer “Feliz é bom.”
 
Os gestos simples e nunca gastos do amor-amor que não arrefece em noite por mais fria que seja.

Protege-te. Que ele há cidadãos que embora ficcionados, não gostam de ser observados.
 
voyeurismo emocional...expressão perfeita para isto. Só tenho pena que a palavra voyeurismo tenha na origem uma conotação tão perversa, porque aqui não se sente perversidade alguma. Só melancolia e falta. Mas também há a presença, essa sim dominante, motivada pela vontade de viver, nem que seja pelo olhar. Estas tuas 'leituras' acerca das pessoas 'que passam' deixam sempre uma boa sensação.

(Não pude deixar de reparar na referência aí ao lado ao 'Broken flowers'. Bom filme...)
 
Gostaste do filme broken flowers?
Se pudesete aí uma referência ao filme deduzo que tenhas gostado..
Mas agora gostava de saber a tua opinião.
:)
 
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