Feliz é bom
Está frio e é de noite. Ou é de noite e está frio? Não sei saber qual deles é que veio primeiro, se o frio que entrou por dentro das camisolas ou a noite que há muito me ensombra os pensamentos e acções. Sei que é de noite e está frio e a rua mostra um alcatrão mais escuro, o escuro da água que caiu do céu mas já não cai. Está cada vez mais frio e uma mancha de gasolina mistura-se numa poça de água e transforma-se em muitas cores, em todas as cores.
De dentro de um restaurante sai um casal, vêem em silêncio, ele vem um pouco mais à frente que ela. São pessoas que se misturam no meio das outras pessoas, são aqueles a quem chamamos outros, que não sabemos distinguir dos demais. Não que não tenham a sua individualidade, mas porque como são eles também poderiam ter sido outros. Mas naquele momento, todos os outros são eles.
Ela lança os braços na cintura dele e dá-lhe um beijo no pescoço. E o casal sisudo, saído do restaurante, que podia ser qualquer outro mas é aquele ganha uma individualidade, ganha um sentido de vida e amor. Riem-se e ela morde-lhe uma orelha, continuam a rir-se em direcção ao carro; comunicam apenas com gestos e olhares, olhares de carinho e amor. Entram no carro,
(Há algo neste quadro que as palavras não conseguem captar, há um contexto frio de noite, de chuva e de ruas vazias e um casal, que não é outro, mas que só podia ser aquele, agora, vive uma paixão de adolescentes. Há alguém que os vê e apreende tudo, quase até o sabor do beijo que trocaram, o cheiro do perfume dela, as imperfeições da idade que se tornaram perfeitas. É tudo, tudo, tudo, tudo. Mas é deles, não meu, eu apenas vi. E registei, invejei.)
fecham as portas mas a luz lá dentro continua acesa, demora ainda algum tempo a apagar-se, nem se dão conta que alguém os observa, directamente, em frente, quase como um voyeur emocional que se apropria de tudo o que se passa à volta para seu próprio prazer. Nessa altura lançam-se nos lábios um do outro, sem querer saber se há alguma luz acesa. Lançam-se de boca semi-aberta, com a língua tocar a língua e com os cheiros a misturarem-se. A luz apaga-se e ele põe o carro a trabalhar. Liga as luzes que incidem em mim, com a violência de um palco, com uma exposição forçada que não queria. Ponho a mão à frente dos olhos, para me proteger da luz.
O carro arranca e pára num semáforo logo a seguir. Ela encosta a cabeça ao seu ombro. E vão assim, felizes.
Feliz é bom.