Music Hall
Há noites que são para ser noites que nunca se hão-de esquecer. Num bairro lisboeta, como os há na cidade, numa casa igual a tantas outras três pessoas combinaram uma conspiração. Combinaram a conspiração dos males do mundo: fizeram-lhes o diagnóstico e apresentaram as soluções.
[E um rádio tocava música saída de um rádio com transístores ou válvulas, porque era um rádio antigo. Era mesmo um rádio antigo: tocava jazz perdido no tempo. Senti-me bem em casa.]
As soluções brindavam-se com copos de vinho tinto e as horas passavam, os sorrisos permaneciam numa noite que estava vista de inúmeras outras formas. Porque foi uma noite de revolução. Todas as noites, numa cozinha minúscula, com uma toalha de xadrez vermelho e branco e copos de vinho são noites de conspiração e revolução.
[O rádio ouvia-se ao longe, noutra divisão, mas não fazia mal. Era uma conspiração caseira, não cozinhada. O jazz parou e a conversa suspendeu-se. Ouviram-se doze vezes o mesmo som monótono: e depois, o jazz retomou exactamente onde tinha ficado, como se alguém o tivesse posto em pausa, durante os últimos doze segundos.]
O que decide a passagem de um ano para outro? A fronteira é mesmo as 23h59’59’’ de um dia e as 00h00’01’’ do outro? Quem decide? Fará mesmo sentido que se decida um dia para se mudar de ano e se passar com as pessoas de quem se gosta. Se gostamos mesmo das pessoas não se passa um dia por ano com elas, ou não se marca uma data para passar com elas. O ano demora um ano a passar. Então vamos passar um ano juntos, vamos passar uma vida juntos. Queres?
Sei que o jazz continuou, já sem estar entre parênteses, assim como a conspiração. Mas conspirava-se mesmo o quê? Espera, espera. Antes dos males do mundo. É que a música bulia mesmo com os meus nervos, mexia-se em mim. Sempre tive esta sensação com a música, mas estava a ser diferente, sentia-me mesmo transportado para outro lugar qualquer. Mas estava ali e estava onde queria estar com as pessoas com quem queria estar – faltavam algumas – e naquele dia, naquela casa, naquela incompreensível transição, numa conspiração com cheiro de revolução.
Era tarde quando os conspiradores se resolveram a descansar. É preciso recuperar forças para a revolução.
Mas então conspirava-se o quê?
Ah, os males do mundo. É que quando gostamos das pessoas já nem queremos saber dos pretextos, queremos é estar com elas. Pois, os males do mundo. E os nossos bens.