Fantástica Gramática Automática
Wednesday, January 11, 2006
  O homem que tinha um canteiro no bolso
Quando o vi, ele monologava com uma senhora. Estavam os dois sentados à minha frente; ele falava, falava, falava. Não dos seus canteiros, aqueles que levava para qualquer lado, mas de qualquer coisa que tinha a ver com dinheiro. Desinteressei-me: tenho tão pouco que prefiro não ouvir o que os outros dizem acerca dele. Fixei o meu olhar na senhora, era pequena e tinha cara de rato, com uns óculos demasiado grandes para a cara pequena

[Ainda estive para lhe perguntar se se chamava Eleanor Rigby.]

que a faziam ter um ar encolhido em si mesmo, como se vivesse dobrada em si para se proteger. Ele falava falava falava. E enquanto falava, o molho de coentros que tinha plantados no bolso do casaco abanava-se, como se fosse o vento que os acariciava e não os movimentos espasmódicos que o homem fazia. Continuei sem me sentir interessado na conversa, mas o homem fascinava-me: dos bolsos laterais – porque o ramo de coentros estava plantado no bolso da lapela – nasciam gerebérias. As gerebérias nasciam do lado esquerdo porque as flores mais bonitas nasciam do lado direito, as frésias, umas frésias silvestres nascidas no bolso de um homem. Olhei instintivamente para as mãos

[A senhora com cara de rato e óculos grandes cerrava os lábios e fingia não ser para ela o monólogo.]

do homem, que eram grossas e grosserias. As unhas ainda guardavam pequenos laivos de terra, a mesma terra que alimentava as suas gerebérias e as frésias e os coentros. Olhei-lhe para os sapatos e dei-me conta de umas rodas, um carrinho de ir ao mercado, daqueles que eu via em moço pequeno, cheio de sementes com que se plantava, com que enchia os bolsos do casaco, da camisa e as dobras das calças. Tudo era lugar para plantar flores e ervas da sopa e da comida.

O senhor levanta-se a vai-se embora. Olho as frésias e sei a quem podia oferecer uma, sei quem ficaria feliz por ter uma flor daquelas, a sua preferida. Mas eu não tenho canteiros nos bolsos do casaco, eu não sei fazer isso.
O homem levantou-se, deu um jeito ao cabelo desgrenhado e despenteado, pouco, ajeitou os óculos no nariz e passou por mim. Estiquei uma mão e recolhi-a.

[A senhora com cara de rato e óculos grandes diz-me «eu cá nunca respondo a esta gente».]

Pensava no que faria, nem sequer fiz caso do que me foi dito. Não há nada mais bonito do que um homem com canteiros nos bolsos.
Olhei para as minhas mãos vazias e inventei um envelope para enviar a frésia imaginária que roubei. Tinha cartão com palavras bonitas e tudo.
 
Comments:
just say it with flowers...bxox
 
E como ficou a eleanor rigby?

Obrigada pelo link: Pés e Pegadas muito engraçado!

Linkar-te-ei (os verbos que inventam!) mais tarde!
 
O homem que anda de Metro e transporta flores e plantas no bolso dava uma bela personagem para um filme. Uma película daquelas que não passaria despercebida ao Animatógrafo.
Belo texto!
 
Não há nada mais “bonito” do que inventar uma flor, um envelope e palavras bonitas...
 
Uma vez andei a passear umas orquídeas silvetres pela cidade de Lisboa, durante um dia inteiro. Umas flores que demoram 11 anos a crescer. Pelo caminho as pessoas vinham ter comigo e perguntavam-me que flores eram aquelas, tão bonitas e pequenas que eram. Eu explicava cada vez, aplicadamente: são orquídeas que nascem no campo, apenas em alguns lugares. Uma espécie protegida. Não se devem colher. Alguém arrancou estas da terra por engano.
Também andei de metro com elas mergulhadas num frasquinho com água.
E depois de tanto sucesso não pude evitar dar-lhes um fim em cheio: como se tratava da mesma espécie que a Ana Margarida estava a usar para a sua investigação na Faculdade de Ciências, ofereci-lhas e volveram-se fotografias microscópicas maravilhosas. Algumas delas foram seleccionadas para um concurso de fotografias ciêntificas com direito a exposição no CCB. Trés chic!!
 
Hoje apeteceu-me não ficar calada. Sabes que te acompanho sempre e há já algum tempo...e é engraçado, cada blog tem o seu mood de fundo, o seu tom e notam-se diferenças do anterior para este, mas a essência continua lá: és um observador e um espontâneo narrador de histórias. Gosto muito de olhar as pessoas através da tua 'leitura' delas. A escrita, quando feita assim, acrescenta. Ainda bem que não escondes a tua num diário qualquer clandestino.
Beijinho grande para ti.
 
O florista ambulante
não vende nem dá flores
e pára por um instante
para cultivar amores.
 
Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]





<< Home
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
2H 31 da Armada A Natureza do Mal A Origem das Espécies A Senhora Sócrates A Terceira Noite A Vida Breve Abrupto Albergue dos Danados Auto-Retrato Avatares de um Desejo B-Site Baghdad Burning BibliOdyssey Blogue Atlântico Borboletas na Barriga Chanatas Ciberescritas Cinco Dias CORPO VISÍVEL Corta-Fitas Da Literatura De Rerum Natura Devaneios Diário Divulgando Banda Desenhada Dualidade Ondulatória Corpuscular E Deus Criou A Mulher Estado Civil Estranho Amor French Kissin' Golpe de Estado Hipatia Ilustrações, Desenhos e Outras Coisas Insónia Irmão Lúcia Jardins de Vento JP Coutinho Kitschnet Kontratempos Maiúsculas Mas Certamente que Sim! Menina Limão Miniscente Mise en Abyme Miss Pearls O Cachimbo de Magritte O Insurgente O Mundo Perfeito O Regabofe Os Canhões de Navarone Pelas Alminhas Porosidade Etérea Portugal dos Pequeninos PostSecret Quatro Caminhos She Hangs Brightly Sorumbático Ter enos Vag s Terra de Ninguém Voz do Deserto Welcome to Elsinore Womenage a Trois
Blogtailors Cooperativa Literária Escritas Mutantes Exploding Dog Extratexto Mattias Inks Minguante mt design O Binóculo Russell's Teapot
A Causa Foi Modificada A Sexta Coluna Por Vocación Terapia Metatísica Tristes Tópicos
11/2005 - 12/2005 / 12/2005 - 01/2006 / 01/2006 - 02/2006 / 02/2006 - 03/2006 / 03/2006 - 04/2006 / 04/2006 - 05/2006 / 05/2006 - 06/2006 / 06/2006 - 07/2006 / 07/2006 - 08/2006 / 08/2006 - 09/2006 / 09/2006 - 10/2006 / 10/2006 - 11/2006 / 11/2006 - 12/2006 / 12/2006 - 01/2007 / 01/2007 - 02/2007 / 02/2007 - 03/2007 / 03/2007 - 04/2007 / 04/2007 - 05/2007 / 05/2007 - 06/2007 / 06/2007 - 07/2007 / 07/2007 - 08/2007 / 08/2007 - 09/2007 / 09/2007 - 10/2007 / 10/2007 - 11/2007 / 11/2007 - 12/2007 / 12/2007 - 01/2008 / 01/2008 - 02/2008 / 02/2008 - 03/2008 / 03/2008 - 04/2008 / 04/2008 - 05/2008 / 05/2008 - 06/2008 / 06/2008 - 07/2008 / 07/2008 - 08/2008 / 08/2008 - 09/2008 / 09/2008 - 10/2008 / 10/2008 - 11/2008 / 11/2008 - 12/2008 / 01/2009 - 02/2009 /