O homem que tinha um canteiro no bolso
Quando o vi, ele monologava com uma senhora. Estavam os dois sentados à minha frente; ele falava, falava, falava. Não dos seus canteiros, aqueles que levava para qualquer lado, mas de qualquer coisa que tinha a ver com dinheiro. Desinteressei-me: tenho tão pouco que prefiro não ouvir o que os outros dizem acerca dele. Fixei o meu olhar na senhora, era pequena e tinha cara de rato, com uns óculos demasiado grandes para a cara pequena
[Ainda estive para lhe perguntar se se chamava Eleanor Rigby.]
que a faziam ter um ar encolhido em si mesmo, como se vivesse dobrada em si para se proteger. Ele falava falava falava. E enquanto falava, o molho de coentros que tinha plantados no bolso do casaco abanava-se, como se fosse o vento que os acariciava e não os movimentos espasmódicos que o homem fazia. Continuei sem me sentir interessado na conversa, mas o homem fascinava-me: dos bolsos laterais – porque o ramo de coentros estava plantado no bolso da lapela – nasciam gerebérias. As gerebérias nasciam do lado esquerdo porque as flores mais bonitas nasciam do lado direito, as frésias, umas frésias silvestres nascidas no bolso de um homem. Olhei instintivamente para as mãos
[A senhora com cara de rato e óculos grandes cerrava os lábios e fingia não ser para ela o monólogo.]
do homem, que eram grossas e grosserias. As unhas ainda guardavam pequenos laivos de terra, a mesma terra que alimentava as suas gerebérias e as frésias e os coentros. Olhei-lhe para os sapatos e dei-me conta de umas rodas, um carrinho de ir ao mercado, daqueles que eu via em moço pequeno, cheio de sementes com que se plantava, com que enchia os bolsos do casaco, da camisa e as dobras das calças. Tudo era lugar para plantar flores e ervas da sopa e da comida.
O senhor levanta-se a vai-se embora. Olho as frésias e sei a quem podia oferecer uma, sei quem ficaria feliz por ter uma flor daquelas, a sua preferida. Mas eu não tenho canteiros nos bolsos do casaco, eu não sei fazer isso.
O homem levantou-se, deu um jeito ao cabelo desgrenhado e despenteado, pouco, ajeitou os óculos no nariz e passou por mim. Estiquei uma mão e recolhi-a.
[A senhora com cara de rato e óculos grandes diz-me «eu cá nunca respondo a esta gente».]
Pensava no que faria, nem sequer fiz caso do que me foi dito. Não há nada mais bonito do que um homem com canteiros nos bolsos.
Olhei para as minhas mãos vazias e inventei um envelope para enviar a frésia imaginária que roubei. Tinha cartão com palavras bonitas e tudo.