Fantástica Gramática Automática
Sunday, February 12, 2006
  O sol
As pessoas que vão à igreja, as pessoas que acreditam.
O sol rasgou-me a cara. Ainda dormia, ou fazia que dormia porque há muito que a minha cabeça se rebelava contra o corpo que necessitava de ficar mais tempo deitado.

Tento, em vão, para a minha cabeça. Há demasiadas coisas para sintetizar, para analisar, para conseguir retirar algo delas.
Disseram-me que eu era uma pessoa muito boa, mas que queria ser mau, disseram-me também que não devia ser mau, que ser bom é melhor. Mas os maus é que costumam ser os fortes. Fiquei a querer ser mau. Já não é a primeira vez que me falam em bondade e em maldade, já não é a primeira vez que me deparo com o dilema que ser bom mas querer ser mau.
Senti que algo crescia dentro de mim. Não que tivesse existido uma ruptura genial ou um abalo brutal, simplesmente estava mais sensível as que as coisas se alterassem dentro de mim, estava mais atento aos sinais que aconteciam dentro de mim, mais atento às palavras que o vento me soprava perto dos canais, mais atento àquilo que as pessoas tinham para me dizer. No fundo, ousei olhar um pouco mais longe do que o meu próprio umbigo para descobrir que afinal, não é só dentro que nós que aprendemos, talvez até aprendamos mais quando o não fazemos.

Eram cinco da tarde e olhei para o céu de ontem. Olhei para todos os olhos cansados que deambulavam pela cidade. Olhei para o céu quase escuro e quase vi que nevava. Encontrava-se num limbo – no mesmo limbo que me encontro entre a maldade e a bendade – entre os primeiros flocos de neve e aqueles que não vão cair. E que não caíram.
Entrámos dentro de uma igreja com torres altas. Não que estivéssemos com uma disposição religiosa, pois ninguém o era, mas estávamos com frio. Vimos os vitrais e o altar. Tudo colorido e feliz, como se ali dentro a vida até fosse simples, como se o facto de se ter fé tornasse as coisas mais lineares, menos prismáticas. Talvez torne, não sei, nunca acreditei.
Num qualquer momento em que me andei pela igreja como alguém que procura algo que não quer encontrar, como alguém que procura, mas sem grande vontade ou entusiasmo. E não encontrei. Olhei para trás e encontrei-os todos sentados: não rezavam; mas estavam em silêncio, estavam concentrados em si mesmos, no seu cansaço, nos seus dias, nas suas horas, nos seus pais e nos seus filhos. Não tinham um ar triste nem feliz; não estavam tristes nem felizes, estavam ali.

Levantamo-nos e saímos, a missa ia começar. O céu ameaçador não deixava cair nem um floco de neve. Todos tínhamos estado em silêncio na igreja e todos tínhamos reflectido. E voltámos para casa.
Despedimo-nos na estação de comboios e foi assim.

O sol já não me rasga a cara porque se levantou para o céu. Sentia saudades deste calor de Lisboa, do sol que nasce e se reflecte no rio, duplicando a força com que entra dentro da minha janela.
Foram duas semanas cinzentas. Tive saudades de escrever. De me escrever e descrever.
 
Comments:
E ainda bem que o fizeste. Obrigado pela partilha e por mais um texto muito bonito.

um abraço
 
Recebi ontem uma carta postal, que trazia saudades do sol, e alguma perguiça, num canto dobrado trazia um floco de neve....

Odrigada :)
 
Já passei por isso; o desejo de regressar à cidade pouco dada a misticismos. Porque célere, envolvente, caótica e que não nos dispensa tempo para reflectir... demasiado.

Citadino que sempre fui, e embora por vezes até saiba bem um tempo de calma e mudança paisagística, pouco tempo passado, o céu parece que me cai em cima...
 
Que texto bonito e melancólico...

Parabéns pelo blog, quero voltar a ler texto que te escrevem e descrevem :)
 
so poderemos ter saudades quando nao ha presenca... e bom ter saudades de Lisboa, das pessoas que ai habitam, do cheiro, do calor e sobretudo das cores fortes e brilhantes...mas mais importante que ter tudo isso e a dimensao que tudo toma quando nao estamos presentes, pelo menos faz-nos pensar e dar valor a algo que consideramos banal
(peco desculpa pela pontuacao mas o teclado nao e lisboeta de certeza :) )
 
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