Os dias assim
Hoje já choveu tanto e já fez tanto sol. Já andei em mangas de camisa na rua e agora tenho vestida uma quente camisola de lã. Hoje está o género de dias que me faz tremer as pernas, que me faz tremer de medo. Hoje está o dia que me faz querer sair de dentro do meu corpo, cortar toda a carne que existe e procurar algo mais profundo que as estranhas viscerais que sei que tenho, que sinto.
Lembro-me de ser mais novo e dias de sol e chuva ao mesmo tempo deixarem no meu corpo uma ansiedade que não consigo controlar; ainda hoje tenho alguma dificuldade em lidar com os dias assim. Li, por mero acaso, no blogue de outrem, uma frase de um dos meus filmes preferidos, Magnolia:
I used to be smart, but now I’m just stupid.Sinto-me assim, de vez em quando, nos dias assim. Andava a vasculhar papéis antigos, assim como pastas no computador, dos tempos idos em que eu comecei a escrever; num espaço intermédio entre a altura em que os escrevi e agora, achei que não tinham valor nenhum e dediquei algum tempo a decidir se os queria no lixo ou se os queria manter. Decidi-me por esconde-los.
Descobri-os e reli-os. Ri-me. Acho que não foi um mau princípio. Estavam demasiado pesados, tinham nas suas palavras uma perpetuada e perpetrada morte emocional continuada. Gostei de alguns e de outros não, mas em todos via uma escrita demasiado emocional para poder considerar que tinha qualidade. A maioria fez-me sorrir, conseguindo lembrar-me das noites em que os escrevia, com a janela do quarto aberta, no Verão e os mosquitos a entrar. Dessas noites guardo a mesma ansiedade que guardo dos dias assim.
[Vou contar um segredo: o céu está tão cinzento e o rio que vejo da minha janela está tão revolto e verde que até tenho medo de sair do quarto.]
Mas não interessa o tempo que faz lá fora, nem a qualquer registo meteorológico. Queria encontrar aquilo que há dentro de mim, queria encontrar um caminho que soubesse que podia caminhar coma certeza de estar a fazer algo bem feito, com a certeza de estar a ser ouvido e lido naquilo que faço bem. Gostava de acordar e saber exactamente aquilo que tenho que fazer a e a forma como quero fazer.
Ainda não.
Por isso é que os dias assim e as noites quentes e insones me deixavam ansioso: porque nessas noites assistia-me ao espírito a razão de estar a fazer algo que não queria e não devia. Por isso a sensação de não aguentar mais e querer sair de dentro do meu corpo e não conseguir.
E hoje, senti a ansiedade vir. Ri-me para ela, sentei-me ao computador e escrevi. Depois disse para mim mesmo: «tu já sabias que isto ia acabar assim». A escrever.