Fantástica Gramática Automática
Sunday, February 19, 2006
  Os dias assim
Hoje já choveu tanto e já fez tanto sol. Já andei em mangas de camisa na rua e agora tenho vestida uma quente camisola de lã. Hoje está o género de dias que me faz tremer as pernas, que me faz tremer de medo. Hoje está o dia que me faz querer sair de dentro do meu corpo, cortar toda a carne que existe e procurar algo mais profundo que as estranhas viscerais que sei que tenho, que sinto.

Lembro-me de ser mais novo e dias de sol e chuva ao mesmo tempo deixarem no meu corpo uma ansiedade que não consigo controlar; ainda hoje tenho alguma dificuldade em lidar com os dias assim. Li, por mero acaso, no blogue de outrem, uma frase de um dos meus filmes preferidos, Magnolia:
I used to be smart, but now I’m just stupid.
Sinto-me assim, de vez em quando, nos dias assim. Andava a vasculhar papéis antigos, assim como pastas no computador, dos tempos idos em que eu comecei a escrever; num espaço intermédio entre a altura em que os escrevi e agora, achei que não tinham valor nenhum e dediquei algum tempo a decidir se os queria no lixo ou se os queria manter. Decidi-me por esconde-los.
Descobri-os e reli-os. Ri-me. Acho que não foi um mau princípio. Estavam demasiado pesados, tinham nas suas palavras uma perpetuada e perpetrada morte emocional continuada. Gostei de alguns e de outros não, mas em todos via uma escrita demasiado emocional para poder considerar que tinha qualidade. A maioria fez-me sorrir, conseguindo lembrar-me das noites em que os escrevia, com a janela do quarto aberta, no Verão e os mosquitos a entrar. Dessas noites guardo a mesma ansiedade que guardo dos dias assim.

[Vou contar um segredo: o céu está tão cinzento e o rio que vejo da minha janela está tão revolto e verde que até tenho medo de sair do quarto.]

Mas não interessa o tempo que faz lá fora, nem a qualquer registo meteorológico. Queria encontrar aquilo que há dentro de mim, queria encontrar um caminho que soubesse que podia caminhar coma certeza de estar a fazer algo bem feito, com a certeza de estar a ser ouvido e lido naquilo que faço bem. Gostava de acordar e saber exactamente aquilo que tenho que fazer a e a forma como quero fazer.
Ainda não.

Por isso é que os dias assim e as noites quentes e insones me deixavam ansioso: porque nessas noites assistia-me ao espírito a razão de estar a fazer algo que não queria e não devia. Por isso a sensação de não aguentar mais e querer sair de dentro do meu corpo e não conseguir.
E hoje, senti a ansiedade vir. Ri-me para ela, sentei-me ao computador e escrevi. Depois disse para mim mesmo: «tu já sabias que isto ia acabar assim». A escrever.
 
Comments:
Estes sao os dias ideias para ficar no aconchego...
 
Acho que deves guardar tudo o que escreves, para te reconstruires daqui a muitos anos, porque a memória nos trai e nos faz esquecer o que fomos. AS tuas palavras em tempos diferentes são testemunhas dos teus momentos e se as tens ~sao valiosas.
 
Tendo a acredidar que o teu corpo te exige isso: sentar-se ao computador, levantar os punhos à altura do teclado, mover os dedos em trajectórias verticais e... até consideraria emprestar-te o teu narizpara apertares contra as teclas, se fosse preciso, ou a tua boca para pegar num lápis ou numa caneta O que tens a fazer é feito seja lá como fôr.
 
Tantas e tantas vezes a escrita parte tão-só da necessidade; por exemplo quando não se percebe se o que assusta mais é o que há dentro de nós ou fora. Nos entretantos, situamo-nos num espaço transitório entre esses dois planos, que é o do papel, as teclas e o monitor...onde amarramos os receios com a possibilidade de contenção das palavras e nos permitimos a organizar o discurso interno. Quando a ansiedade vem, sabemos que acaba assim...a escrever, ou a ler

:)
 
A escrita é para mim uma limpeza da alma...a melhor forma de exprimir os vários eus...gostei deste post que me deu vontade de reler os meus textos passados...boa semana!
 
acorrentei-te nas manias!
 
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