Fantástica Gramática Automática
Tuesday, February 21, 2006
  Ouvir com os ouvidos tapados
Vão à minha frente. Não quis olhar. Tento reprimir que os olhos olhem para os outros; vejo em cada gesto uma frase, em cada arquear de sobrancelhas um parágrafo inteiro. Entraram e ela vinha à frente e parecia que não vinham juntos, mas vinham e vestiam os dois, um casaco verde.
Não olhes, não olhes, não olhes, não oiças.
A posição dele é de quem a tenta convencer de alguma coisa, olho-a e acho que não é bonita, mas não quero saber disso. Estão zangados e ela está sempre à beira das lágrimas. A cada momento vejo o queixo a tremer, mas olham para mim e vêem que eu estou a ouvir e param. Mas não aguentam, voltam a esquecer que há mais pessoas à sua volta e retomam a discussão. Várias vezes durante a mesma frase, ela vira a cara para o vidro e observa-o no reflexo. E a expressão dele não muda e ela olha-o nos olhos, o queixo treme e as lágrimas quase que lhe afloram os lábios.

Passei na entrada do metro, na mesma em que entro todos os dias e o segurança estava fumar um cigarro. Olhei-o e ele não reparou em mim. Vejo-o todos os dias e ele também me vê todos os dias; mas eu sei que ele é segurança e que está a fumar uma cigarro e ele não sabe nada de mim, como não sabe da senhora que entrou três metros à minha frente que me empurrou para sair do autocarro primeiro e chegar três metros adiantada ao metro.
Tenho vontade de lhe desejar bom dia ou boa tarde. Já faz parte do meu imaginário diário em que todas as pessoas que eu reconheço também me reconhecem. Até os dois fulanos que vêm na mesmo último autocarro terças-feiras à noite. Tenho que me convencer que as pessoas não observam como eu observo engulo os bons dias e as boas tardes e nas terças-feiras as boas noites.

Mas não conseguir resistir a olhar e ouvir com os olhos.
E subimos e descemos e há os solavancos que os aproximam; ele tenta ainda dar-lhe a mão. Mas esta permanece como se nada lhe tivesse a tocar, como se estivesse ausentada da vida, como se a outra mão que lhe tocava não fosse fria ou quente ou carne. Mais longe do que não existir, era não estar lá. E a mão dela sentia que a mão dele não estava lá porque lhe não sentia nada.

E no momento em que as lágrimas quase caem em catadupa. São sustidas por um respirar fundo.
Nos meus ouvidos a Martina Topley-Bird cantava, close your eyes and see/when there ain’t no light.
 
Comments:
Fecho os meus olhos e leio. Tudo o que se escreve à minha volta.
 
sou uma gaija obediente! (ps, gostei deste post)
 
....lagrimas nascem quando o desalento das mãos se instala, dentro do coração protegido pelo casaco verde.....

Já tinha ouvido ler sobre a tua cusquice.....
 
Muito interessante! também eu tenho esse hábito e reprimo muitos olás e bons dias...
 
..Faço da minha boca as palavras do legível. E acrescento o 'boa noite' porque é sempre impactante cruzar-me contigo por aqui.
 
curti isso ae...é teu esse texto? tava procurando sobre o filme "de tanto bater o meu coração parou" e achei esse blog...acabei de ver o filme e é muito bom...falou...
 
também gostei, ver e ouvir com os olhos
 
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