Adília
Não foi assim que começaste mas podia ter sido. Merda de casa cheia de um bric-à-brac francês que tentavas pôr nas mãos das pessoas que lá iam para que mais tarde se lembrassem de ti. Mesmo que não desses nada, as pessoas continuavam a lembrar-se de ti Mas começaste por dizer
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
como apresentação. Olhei para todo o lado a tentar ver algumas baratas. Não vi. Mas vi muitos gatos, de verdade e de porcelana. E acho que tu vias mais alguns, porque só contei seis e tu nomeaste nove. Alucinavas ou já tinham morrido ou já os tinhas dado? Não te importas que te trate por tu? Ou prefere que a trate de outra forma? Seja tu.
Tenho que contar esta história porque quando fui à tua casa estavas a beber chá com um pé engessado. Disseste-me que os amigos não são só para os momentos em que estamos com os pés enjeitados, são também para quando temos a alma engessada. Pára de me bater com a canadiana, vou contar a história. E vai fazer chá, não acredito que estejas assim tão mal como dizes.
Não gosto de gatos, nem de verdade nem de porcelana, olho para a minha colher e tem um pelo e oito grãos de açúcar mascavado. E a casa está cheia de gatos e tudo começou porque
O algodão doce
assustou-a
a ponto
de saltar do carroussel
em andamento
e de torcer o pé
Está mesmo tudo explicado. Menos o pelo de gato que me está a arranhar a garganta.
Ela olha-me através das pagines de um livro que há muito está pousado na minha prateleira. Olha-me a através da cara redonda e dos óculos enormes que tem, de massa castanha, acho, porque a fotografia é a preto e branco. Estás viva na fotografia e sorris. As fotografias são sempre de pessoas vivas, não são? Não, os retratos é que são. Porque até já há fotografias de corpos mortos e mutilados e mandados para as masmorras mortuárias. Armazéns de almas.
Para quê sacrificar mais uma página em branco?
se ainda escrevesse em peles de bezerros recém nascidos
atrevia-me a sacrificar bezerros recém-nascidos?
acho que sim
Ainda bem que escrevo na internet. Poupa-me estes dilemas. Agora estás orgulhosa de mim, não estás? Podia também escrever o poema do mongolóide que fala de caixas de soutien e viagens de autocarro. E de espíritos. Gosto mais de alma. Gosto mais porque dá para fazer uma aliteração com a palavra aliteração e armazém. E com todas as palavras que começam por «a». Sabes quantas são? Eu também não. E quem rima sem querer é amado sem saber e eu já rimei tantas vezes que estou a ficar convencido.
Tantas?, foram só duas. Mania de aumentar. É também a minha história
Tua e da Adília.
, não é só a minha porque é tudo aumentado. Não sou assim tão interessante nem escrevo poemas. Já escrevi. Porque
(…)
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
se os meus poemas
contribuírem para isso
são excelentes
Pena ter deixado de escrever. Agora adeus
I’m late, I’m late, for a very important date.
As melhoras para o pé torcido. E o pelo que não sai da minha garganta.