Ao serão
É de noite mas não está calor. Não está o calor que devia estar quando estas coisas acontecem. Porque tem que estar calor para as janelas estarem abertas e os ruídos da noite entrarem em casa com a familiaridade de uma porta aberta na aldeia. Há uma familiaridade universal nos ruídos noite que entram em casa. Especialmente no Verão.
A janela da cozinha estava aberta e ouvi o comboio de mercadorias passar. Vinha de Sta. Apolónia e passava na estação de Marvila. Não tinhas ninguém nos cais e os vagões de carga do comboio iam quase vazios, aparte de algumas pessoas que fugiam – quem sabe se delas próprias – e de uns quantos sacos de qualquer coisa. Passou o comboio e fez vento na estação de Marvila. Um vento que ninguém viu e sentiu. Um vento de Quaresma quente e cheio de desgraça, assim se benzem as velhas nas casas no bairro abandonado quando passa por elas. Benzem-se a afugentam o diabo.
É de noite mas é cedo mas os ruídos da noite dizem-me que já são quatro da manhã e que o comboio de mercadorias é o primeiro que vai para uns montes, uns lugares, uns sítios quaisquer que não consigo imaginar. Para mim vai sempre tudo para um lugar seco de planícies e vales suaves porque é lá que tudo e solitário e vazio. É lá que se espiam os pecados, quando se chega de uma noite de vigília no vagão de mercadorias de um comboio que vai quase vazio. Levam dois personagens de um romance escrito por uma adolescente que li quando era adolescente, The Outsiders.
Sei que é um Março frio e chuvoso, mas os ruídos da noite trazem até mim um Suão deslavado que me finge o Verão. O comboio passa na linha, no bairro onde as velhas se benzem por causo do vento da sua passagem, tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum e o som vai desaparecendo, misturando-se nos ruídos da noite à medida que o comboio se encaminha para esse tal lugar seco com planícies e vales.
O comboio passou, o Suão também e as velhas benzeram-se. Amén.
Os ruídos da noite fizeram-se ausência de barulho, até de silêncio.
Voltou o frio e o serão de Março.
Estendi o lençol e voltei para dentro.
E respirei, antes de fechar a janela, o cheiro a Primavera.
A estação de Marvila continua vazia. Só amanhã o quiosque.