Bater de coração universal
As pessoas caminham na rua e não dão conta. Concentradas nas passadas e nos passados, no caminho que dista de um ponto ao outro, na linha recta, no voo de pássaro que as leva de um sítio para outro. Cada passada pode ser uma batida de coração, um movimento bio-eléctrico que nos permite dar a outra passada, a que vem a seguir e a outra e a outra e a outra e a outra. À nossa volta, vida acontece. Não é A vida que acontece, é vida que acontece, não interessa a de quem, não interessa se é a de ninguém ou a de Ningãe.
Pára de passar essa passada larga. Pára!
À frente vais um casal de namorados que só mais tarde se percebe que são namoradas. Não interessa. O que é que isso interessa? E tu disseste, «nada». Vês?
Vão de mão dada, caminham a passo de passeio, sem pressa e sem pensar na forma mais rápida de chegar a um ponto a partir de outro. Caminham e olham e as mãos dadas acariciam-se. Apesar do frio que frieira as mãos, estão sem luvas e acariciam-se. Ao olhar para elas ninguém as diria capazes de amar: pinturas carregadas, tudo preto e escuro, negro como as almas perturbadas e ensimesmadas, tudo demasiado egoísta para um gesto desprovido de egoísmo ou de alternativas intenções.
Não havia preconceito, apenas a vontade de estar a acariciar as mãos, apenas a vontade de sentir o frio a friar a mãos e passear debaixo do céu.
Nove passos atrás, olhava em volta. Não vêem? Olhem, Olhem! As passadas das pessoas fazem um bater de coração descompassado de tão apaixonado. A cada segundo morrem mais de mil pessoas e a cada segundo nascem mais de mil pessoas. Outras tantas fazem amor e declarações de amor. Mais umas passadas descompassadas das pessoas que não sabem que contribuem para o bater de coração universal que acontece neste exacto momento, em que se concentram na distância entre um ponto e outro.
O mundo é demasiado grande para ser meu. Porque eu sou apenas mais um impulso eléctrico que estimula o coração a bater.