Não era o sol que entrava pelas frestas da persiana – e ouço a tua voz dentro de mim – “estore, estore”. Está bem,
não era o sol que entrava pelas frestas do estore, o que entrava era uma luminosidade difusa pelo reflexo do rio, uma luminosidade cinzenta. Que fez com que acordasse. Não poucas vezes utilizo esse artifício para acordar mais cedo, deixar algumas frestas da persiana – vou-me rindo outra vez e emendo – deixar algumas frestas do estore para acordar com a luz natural em vez de acordar com o despertador.
Penso em ti e em como nos crescemos. Um dia hades ver, dizes tu; “hás-de, hás-de”, corrijo entre dois sorrisos. Ora, respondes-me com um beijo para desviares a atenção.
A cama era enorme e estava sozinho porque não tinha quem estivesse. É por isso que a cama era enorme. Qualquer cama é gigantesca sempre que não durmo contigo. Perco-me no meio de tantos lençóis e cobertores, tenho sonhos que não são sonhos, mas sim arranhos de realidade porque misturam aquilo que se passou com aquilo que ainda há-de ser com aquilo que desejo com aquilo que tenho medo e tu dizes-me sussurrado
“não podes sonhar assim, tens que tentar que esses pensamentos parvos não existam dentro de ti, tens que os afastar. Eles são só sonhos, não são realidades”
quando te conto os sonhos.
Mas não era só eu que sinto os sonhos, não era só eu que acordo de manhã com a luz cinzenta. o teu quarto é virado para o pequeno quintal onde, às vezes, plantamos flores; quando não chove ou neva ou quando não esté aquele frio abrasivo que queima as mãos que revolvem a terra, que ficam castanhas entre os filamentos das impressões digitais.
Não era o sol que entrava pela janela aberta, era a luz filtrada pelas nuvens. Pelas cortinas japonesas que comprámos uma vez num mercado de objectos roubados. E pela outra cortina que era um lençol dobrado.
Acordamos ao mesmo tempo em quartos inundados de luz, em quartos que são nossos, nossos, nossos, dos dois, partilhados. Todas as camas são demasiado grandes quando estamos sozinhos. Esticas o braço para apanhar o telemóvel que repousa em cima de qualquer coisa que já não sei – porque o telemóvel está à distância de um esticar de braço. E lês
Quão feios são os telemóveis nos textos românticos, quão mais bonitas são as cartas, os postais, os aerogramas. Aquilo em que se escreve e não se lê num ecrã.
a mensagem matinal que te enviei. Dizia coisas bonitas com palavras bonitas como “amor” e “sempre”, “desejo” e “abraço” e “beijos”. Cai o telemóvel em cima das cobertas da cama e pensas endorminhada numa resposta.
A melhor resposta para aquilo que me querias ter dito ao ouvido teria sido lançares-te para cima mim e fazermos amor. Pegas no telemóvel, olhos ensonados e apaixonados. Os dedos carregavam devagar nas teclas, ainda pouco obedientes ao cérebro.
Se aqui estivesses…
This is the room where we met(…)This is the room where we metThis is the dress I had onThis is the moment you fearWhen you wake up and no one is thereBelly – Judas My Heart, King [1995]
[Inicialmente chamado “Quartos, cortinas e estores” e escrito na terceira pessoa do singular embora nunca o tenha sido.]