Ground Zero
“Não sabes escrever.”
«Eu sei.»
“Não sabes escrever.”
«Eu sei.»
“O que é que sabes?”
«Que não sei escrever.»
No local onde as torres gémeas caíram há agora um buraco. Ou havia um buraco que foi tapado com sucessivas camadas de terra, betão, mais terra e plantas. E depois puseram lá pessoas para que aquilo parecesse um jardim. Não sei se foi isto que fizeram, nem sei o que vai ser feito a seguir, outro edifício com um memorial e pronto. Sei que é um lugar onde a vida começou do zero, do abaixo de zero. De um buraco no chão. Foi um início a partir do antes do princípio.
Mas agora, qual é a probabilidade de voltar a acontecer o mesmo? Na escrita e nas torres gémeas. Porque deixei mesmo de saber escrever e as torres já não se vão voltar a erguer. Ou se o fizerem, será com um formato diferente.
Vou na rua e imagino-me sentado ao computador; saio do autocarro, contorno a esquina e baixo o olhar para não ter que dizer olá, para não ter que sorrir. Sairia um esgar azedado, decerto. Chego-me à porta do prédio e quatro miúdos partilham dois litros de cerveja em copos de plástico, duas garrafas amareladas, acastanhadas, avermelhadas. Partilham regiamente e fazem caretas quando bebem. Calam-se quando passo por eles e nessa altura não consigo reprimir um sorriso. Não queria sorrir, não queria achar piada a nada, apetecia-me estar confinado a mim.
Deixei-me rir e entrei no prédio. Virei as chaves na mão e comecei a abrir o correio. Não resisti a olhar para o outro lado da porta, vidrada, para o grupo que fazia caretas por estar a provar cerveja pela primeira vez. Os nossos olhares cruzam-se e num gesto de audácia estica-me o braço com a mão que segurava o copo de plástico, num gesto de oferta. Ri-me e não esbocei nenhum gesto. Só me ri. Nenhuma outra reacção me ocorreu: não queria ser paternalista nem queria ser parvo. Queria aceitar, mas não fui audaz, mais um ponto para a fraqueza de espírito. Mas ri-me.
Tenho visto mais garrafas à porta do prédio, talvez já não façam tantas caretas e daqui a uns anos se arrisquem a beber dentro de um café.
Volto a pensar na escrita e no jardim de almas. Porque são os dois exactamente a mesma coisa. Um jardim de almas inscrevível. A minha escrita e um início antes do antes do princípio.