Sons Mudos
Em silêncio. O meu silêncio é o barulho. O barulho em forma de música, em forma de sons concretos, em forma de notas harmónicas e compassadas em três por quatro e quatro por quatro e dois por quatro sem ordem aparente a não ser aquela que eu determino, aleatoriamente.
Consegues ouvir o silêncio? Não é nada de especial o silêncio. É apenas mais um barulho que não soubemos nomear. É o zumbido que ouvimos, é a camada som que está debaixo de qualquer outro som. É o que ouvimos nos nossos sonhos quando não nos lembramos deles. Isso é o silêncio.
Há uma praia que conheci – há tantas praias que conheci. Esta é diferente e conhecida mas eu quero que fique desconhecida porque neste momento quero ser o único a tê-la, a lembrar-me dela, nas diferentes formas em que a absorvi. Estava tanto vento que a areia queimava as pernas, como se incontáveis fagulhas de fogueira e lareira queimassem as pernas ao mesmo tempo. E mesmo assim valia a pena estar lá. Voltámos para dentro do carro e estivemos à conversa, a ouvir música, a fumar, a beber uns restos de vodka que ainda havia debaixo do banco. Ríamos e tocávamo-nos; não importava que nos vissem a beber pela garrafa.
Voltámos dias depois, sem vento e sem a areia a voar para nos magoar. Não voltámos para o carro e ficámos na praia quase até ser de noite. Não fizemos nenhuma fogueira nem vimos as estrelas e a lua. Não bebemos vodka mas bebemos saliva.
Estou a pensar na praia agora. Está frio vento e chuva e as ondas devem estar num rebuliço. Mas a praia está invisível. Não porque não exista, porque existe mesmo, mas porque não há lá ninguém para ver. Encho a praia com todos os sítios dela por onde passámos: conseguimos até aparecer em vários lugares ao mesmo tempo. Faço-te adeus; faço-nos adeus de mão dada contigo.
Amanhã o céu vai continuar a ser cinzento. A chuva vai-se abater sobre a areia que vai ficar mais escura, como a maiorias das coisas quando são lavadas e levadas pela chuva. O céu vai-se agitar em cinzento e o mar em verde. A praia enorme vai-se deixar espalhar pela chuva, vai estar de novo invisível. Podia lá parar o carro e beber uma garrafa de vodka sozinho.
E mesmo que o rádio do carro estivesse ligado ou que estivesse a tocar um disco qualquer ou que nada estivesse a acontecer a não ser eu dentro do carro ou nós dentro do carro o silêncio vai lá estar. E mesmo que nada disso acontecesse e o silêncio também lá ia estar. É de noite e tu do vai ser varrido pelo vento e chuva e ondas. Porque é a praia.