Fantástica Gramática Automática
Wednesday, April 26, 2006
  Cruzamentos
Sempre que penso nisto tenho medo. Sempre que regresso às reflexões no autocarro, no caminho para casa. Podia ser na cozinha ao som do frigorífico, mas é no autocarro que penso, naquele tempo que julgam perdido, eu aproveito. Lembrei-me do frigorífico porque lia uma crónica do António Lobo Antunes que começava com ele a escrever na mesa da cozinha, com uma luz sobre a mesa. O barulho do frigorífico acrescentei eu, porque achei que dava um ar mais acolhedor ao quadro.
Lembrei-me de uma história para contar, para escrever, das inúmeras que faço com as pessoas com que todos os dias me cruzo, mas que não fazem a mais pequena ideia que eu existo e que penso nelas. Imaginei que ia uma rapariga que vê um rapaz: apaixona-se por ele à primeira vista, vê nele o amor da sua vida; mas essa descoberta deixa-a estática e apática, incapaz de reagir por se saber defronte de algo muito importante para a sua vida. E deixa-o ir embora e vive uma vida só, idealizando-o, imaginando que o vai encontrar nesse dia e nunca encontra.

Fiquei a olhar para dentro de mim. Seria maldade a invenção desta história, ou podia-me levar bem mais longe do que eu estava inicialmente a ver. Acabei por optar pela segunda opção visto que a viagem de autocarro dura quarenta e dois minutos, o mesmo número do autocarro, e que contínuo a pensar sobre ela.
Mas se esse destino por cumprir existir mesmo? Mas se for mesmo o amor de nossa vida que existe à nossa frente e o deixamos fugir? Esperamos pela felicidade como quem vai à igreja todos os dias. Corremos atrás dele e fazemo-lo nosso. Deixamo-lo ir sabendo que há-de ser nosso. Ocorreu-me que ao deixa-lo ir e não mais o encontrar, talvez esse não fosse o amor da nossa vida. E a dúvida que reside na cabeça da rapariga da história é: espero por ele ou deixo-me ir, porque esse amor da minha vida era apenas uma ilusão, o verdadeiro ainda está para vir e entre aí a questão do amor auto-induzido:
o amor à primeira vista pode ser auto-induzido, por um desejo de aleatoriedade cósmica, uma espécie de garantia de um destino que se há-de cumprir. E viver em função dessa indução, por mais doloroso e dissaborosa que seja. Pode ser que sim, pode ser que não. Neste limbo viveria a minha personagem. No dilema. Se lhe encontrei um fim? Talvez o amor. Talvez o limbo. Talvez a solidão. Talvez.

Não escrevia na cozinha e o que pensei no autocarro é escrito em quarto escuro. Não há o barulho do frigorífico mas a ventoinha do computador; os barulhos da rua através de uma janela aberta que começa a frescar-me os pés descalços. O dia passou quase todo e só faltam cinquenta e quatro minutos para terminar. O balanço é: cento e trinta e nove minutos dentro de autocarros e uma história. Fim.
 
Comments:
A tua escrita e registo são fascinantes! keep going :-)
 
"só se ama uma vez", disse certa vez a mamã. Não ousei opor-me ou levantar objecções, nunca se deve duvidar de uma mulher que passou a vida a admoestar-nos com frases do "Principezinho".
 
e se... "desculpa, não eras tu no autocarro, no outro dia?" - uma segunda oportunidade. E se for tão o amor da nossa vida que não lhe podemos escapar?
 
«o melhor das coisas que não temos é que podemos sonhá-las infinitamente melhores do que elas são de facto», diz-me sempre alguém querido.
 
42 é suposto ser a resposta.
 
Não há soluções, há caminhos de Vasco Pinto Magalhães, s.j.

e se, e se, e se, e se... e se há sempre um e se todos os ses são válidos.
 
achei que deveria deixar de ser somente uma leitora silenciosa e fazer um pouco de barulho.. primeiro... o texto, como alias todos os teus textos, e divinal!! segundo, fdx.. 42 minutos! tu moras na mexelhoeira, ou que?? ehehehehe.... ponto 3, eu tambem gosto de me perder em pensamentos, imaginar a vida de outras pessoas, fazer historias... geralmente sao mais sarcasticas e sadicas... mas uma gaja entretem-se com o que pode! sabes, ha alturas em que tb penso que nao posso deixar escapar algo, e ha outras em que sei que nao estou preparada para avancar... a vida tem destas coisas... tento sempre fazer tudo e so me arrepender do que nao fiz! bom fim de semana!
 
Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]





<< Home
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
2H 31 da Armada A Natureza do Mal A Origem das Espécies A Senhora Sócrates A Terceira Noite A Vida Breve Abrupto Albergue dos Danados Auto-Retrato Avatares de um Desejo B-Site Baghdad Burning BibliOdyssey Blogue Atlântico Borboletas na Barriga Chanatas Ciberescritas Cinco Dias CORPO VISÍVEL Corta-Fitas Da Literatura De Rerum Natura Devaneios Diário Divulgando Banda Desenhada Dualidade Ondulatória Corpuscular E Deus Criou A Mulher Estado Civil Estranho Amor French Kissin' Golpe de Estado Hipatia Ilustrações, Desenhos e Outras Coisas Insónia Irmão Lúcia Jardins de Vento JP Coutinho Kitschnet Kontratempos Maiúsculas Mas Certamente que Sim! Menina Limão Miniscente Mise en Abyme Miss Pearls O Cachimbo de Magritte O Insurgente O Mundo Perfeito O Regabofe Os Canhões de Navarone Pelas Alminhas Porosidade Etérea Portugal dos Pequeninos PostSecret Quatro Caminhos She Hangs Brightly Sorumbático Ter enos Vag s Terra de Ninguém Voz do Deserto Welcome to Elsinore Womenage a Trois
Blogtailors Cooperativa Literária Escritas Mutantes Exploding Dog Extratexto Mattias Inks Minguante mt design O Binóculo Russell's Teapot
A Causa Foi Modificada A Sexta Coluna Por Vocación Terapia Metatísica Tristes Tópicos
11/2005 - 12/2005 / 12/2005 - 01/2006 / 01/2006 - 02/2006 / 02/2006 - 03/2006 / 03/2006 - 04/2006 / 04/2006 - 05/2006 / 05/2006 - 06/2006 / 06/2006 - 07/2006 / 07/2006 - 08/2006 / 08/2006 - 09/2006 / 09/2006 - 10/2006 / 10/2006 - 11/2006 / 11/2006 - 12/2006 / 12/2006 - 01/2007 / 01/2007 - 02/2007 / 02/2007 - 03/2007 / 03/2007 - 04/2007 / 04/2007 - 05/2007 / 05/2007 - 06/2007 / 06/2007 - 07/2007 / 07/2007 - 08/2007 / 08/2007 - 09/2007 / 09/2007 - 10/2007 / 10/2007 - 11/2007 / 11/2007 - 12/2007 / 12/2007 - 01/2008 / 01/2008 - 02/2008 / 02/2008 - 03/2008 / 03/2008 - 04/2008 / 04/2008 - 05/2008 / 05/2008 - 06/2008 / 06/2008 - 07/2008 / 07/2008 - 08/2008 / 08/2008 - 09/2008 / 09/2008 - 10/2008 / 10/2008 - 11/2008 / 11/2008 - 12/2008 / 01/2009 - 02/2009 /