Cruzamentos
Sempre que penso nisto tenho medo. Sempre que regresso às reflexões no autocarro, no caminho para casa. Podia ser na cozinha ao som do frigorífico, mas é no autocarro que penso, naquele tempo que julgam perdido, eu aproveito. Lembrei-me do frigorífico porque lia uma crónica do António Lobo Antunes que começava com ele a escrever na mesa da cozinha, com uma luz sobre a mesa. O barulho do frigorífico acrescentei eu, porque achei que dava um ar mais acolhedor ao quadro.
Lembrei-me de uma história para contar, para escrever, das inúmeras que faço com as pessoas com que todos os dias me cruzo, mas que não fazem a mais pequena ideia que eu existo e que penso nelas. Imaginei que ia uma rapariga que vê um rapaz: apaixona-se por ele à primeira vista, vê nele o amor da sua vida; mas essa descoberta deixa-a estática e apática, incapaz de reagir por se saber defronte de algo muito importante para a sua vida. E deixa-o ir embora e vive uma vida só, idealizando-o, imaginando que o vai encontrar nesse dia e nunca encontra.
Fiquei a olhar para dentro de mim. Seria maldade a invenção desta história, ou podia-me levar bem mais longe do que eu estava inicialmente a ver. Acabei por optar pela segunda opção visto que a viagem de autocarro dura quarenta e dois minutos, o mesmo número do autocarro, e que contínuo a pensar sobre ela.
Mas se esse destino por cumprir existir mesmo? Mas se for mesmo o amor de nossa vida que existe à nossa frente e o deixamos fugir? Esperamos pela felicidade como quem vai à igreja todos os dias. Corremos atrás dele e fazemo-lo nosso. Deixamo-lo ir sabendo que há-de ser nosso. Ocorreu-me que ao deixa-lo ir e não mais o encontrar, talvez esse não fosse o amor da nossa vida. E a dúvida que reside na cabeça da rapariga da história é: espero por ele ou deixo-me ir, porque esse amor da minha vida era apenas uma ilusão, o verdadeiro ainda está para vir e entre aí a questão do amor auto-induzido:
o amor à primeira vista pode ser auto-induzido, por um desejo de aleatoriedade cósmica, uma espécie de garantia de um destino que se há-de cumprir. E viver em função dessa indução, por mais doloroso e dissaborosa que seja. Pode ser que sim, pode ser que não. Neste limbo viveria a minha personagem. No dilema. Se lhe encontrei um fim? Talvez o amor. Talvez o limbo. Talvez a solidão. Talvez.
Não escrevia na cozinha e o que pensei no autocarro é escrito em quarto escuro. Não há o barulho do frigorífico mas a ventoinha do computador; os barulhos da rua através de uma janela aberta que começa a frescar-me os pés descalços. O dia passou quase todo e só faltam cinquenta e quatro minutos para terminar. O balanço é: cento e trinta e nove minutos dentro de autocarros e uma história. Fim.