No meu bairro
A minha rua tem cinco prédios, três cafés, uma mercearia e uma churrasqueira.
Há um cão preto, rafeiro e feio que se chama Sansão que protege as pessoas que se deslocam de um dos cafés até à paragem do autocarro. (Tenho uma vontade mórbida de lhe cortar o pelo para saber o que acontece.) Morde a outros cães para proteger o seu território e nunca vi nenhum gato nas redondezas. Todos os dias digo bom dia ao Sr. Manuel, dono da mercearia sita nos baixos do meu prédio. E compro-lhe pão e vegetais. Mais à frente, numa rua escondida, há um pequeno mercado que vende peixe fresco.
Era ontem à noite e estava na varanda. Via a ponte e via as luzes dos carros que passavam para um fim-de-semana grande. Gosto mais da vista do meu quarto para o rio de noite. Porque se vêem as luzes da zona industrial, com cuidado ouve-se o comboio e os meus vizinhos de cima a fornicar. Estava na varanda e recordava parte da minha adolescência. Talvez o estivesse a fazer porque fumava, clandestinamente um cigarro. Era clandestino das pessoas com quem partilho uma casa e de todas as outras pessoas a quem disse que desde Agosto que não fumo. Até era clandestino da minha consciência. Apaguei-o no tanque que ficou abandonado na minha varanda.
Na noite fria, após expulsar o fumo do cigarro, continuava a ver a minha própria respiração. E umas luzes vindas de uma discoteca perto do Convento do Beato. Pareciam discos voadores, aqueles que ouvia no rádio.
Pouco antes de terminar o décimo segundo ano um amigo contava-me, estou farto desta terra, quero ir para Lisboa, quero ser anónimo. Ri-me. Para mim uma grande cidade não passa de um aglomerado de micro-universos em que somos conhecidos como nas nossas terras natais. No entanto, podemos cambiar de micro-universo as vezes que quisermos e aí sim, somos anónimos. A mim o que me agradava era a possibilidade de me re-inventar, a possibilidade de me não verem através do meu passado mas apenas do meu presente e isso era algo que eu queria. Não que tivesse um passado assim tão interessante, mas quando temos dezoito anos essas coisas contam.
Ele integrou-se no seu bairro em Lisboa e eu quando comecei a conhecer pessoas contei o meu passado.
É sozinho que ontem fumo um cigarro na varanda do meu quarto a olhar para umas luzes que são projectadas nas nuvens por cima de Lisboa. Sinto na brisa fresca da noite as mão que me aquecem os braços e me perguntam se eu não tenho frio, se não preciso de um casaco. Sei que essa brisa espera que eu responda que não preciso, que a sua presença me aquece; para depois nos rirmos.
Olho um gato que furtivamente escapa à vigilância do Sansão. Anda no meio de umas couves no meio de uma horta. Chamo-o e penso que não me importava de ter um gato.