Nós fomos feitos um para o outro
Querida Adília:
Tenho escrito muito sobre ti. Dou por mim a folhear a antologia de poemas que alguém fez sobre o teu trabalho. Debruço-me várias vezes sobre o livro, mas nunca demasiado, tenho medo de cair nesse precipício escatológico que é a tua cabeça. Não me leves a mal, nem penses que eu não gosto de ti, às vezes penso que és demasiado complicada para mim, outras vezes demasiado simples. Opto sempre pela parte complicada em ti, sei que não fazes o que fazes por acaso e que és profundamente mortífera. Para os outros e para ti.
Vou-te contar uma história, aliás várias histórias sobre a tua escrita e a minha leitura. Da tua escrita, claro está. As primeiras vezes que te li foi numa revista e ainda continuo a achar que é uma pena teres deixado de fazer essas crónicas, gostava da forma como saltavas de assunto em assunto sem a menor vergonha de parecer incoerente. Estabelecias esse protocolo e não querias saber se o respeitavas ou não. Escrevias e eu lia, como muitas outras pessoas.
Mas eu li-te com a inveja de quem não consegue fazer aquilo que fazes. Sentia os meus ossos trilhados por não sei quantos ratos da inveja. Sentia a carne das minhas vísceras mastigada por cada palavra das tuas crónicas e dos teus poemas. Quis ser Adília. Nunca seria tão perturbado, nem perverso quanto tu. Procurei nas drogas e na bebida a minha Adília, uma Adília homem ou mulher, mas que vivesse dentro de mim e que eu pudesse chamar minha, minha criação e continuação escrita do meu estupor alcoólico.
Não a encontrei e não me importo. Porque eu não sou Adília.
Ainda me perguntas, ou pelo menos te perguntas porque é que eu escrevi que somos feitos um para o outro. Não, não estou apaixonado por ti nem podes ver em mim um potencial namorado ou marido, tens idade para ser minha tia-avó. Fomos feitos um para o outro porque eu gosto de escrever sobre ti, por cima de ti, por cima das tuas palavras.
Ou para as deixar iguais. Ou para as riscar e escrever por cima porque não valem nada. Se te zangares e não quiseres falar mais comigo não faz mal, às vezes também acho que és um bocado chata (excepto naquela história de natal).
Adília, sua mariposa…
Cumprimentos,
PS Só já volto à tua casa para beber chá quando não tiveres gatos.