Velocidade Pessoal
Estou sentado na paragem de autocarro a ver o reflexo do sol numas janelas que estão a ser limpas por uma mulher-a-dias. Estou sentado na paragem de autocarro e não me sai da cabeça uma imagem de mim nu sentado na beira da cama a chorar, com os cotovelos apoiados nos joelhos e os nós dos dedos a pressionar com força os olhos para que as lágrimas caiam para dentro e não para fora. Há dias que esta imagem me acompanha e não sei porquê. Lembro-me de novo dela agora porque estou sentado na mesma posição, à espera do autocarro.
Estou mesmo à espera do autocarro? Porque não sei se espero o mesmo que as pessoas ao meu lado esperam. Ou elas não esperam o mesmo que eu espero. Mas estava sol quando isto aconteceu: o reflexo limpo pela mulher-a-dias aquecia-me num banco frio e impessoal e exposto ao vento.
Li num lugar qualquer como a escrita servia de catarse; também mo perguntaram pessoalmente. Suponho que a escrita separada de nós seja oferecer aos outros uma visão diferente daquilo que todos vemos todos os dias, o tempo frio e quente, as mulheres vestidas de preto, os pedintes no metro, a chuva que é bonita, a chuva que é feia, o sol que aquece e o sol que queima. Resta saber se alguém quer ver o mundo pelos nossos olhos, ou por aquilo que mostramos ser os nossos olhos.
Desvio a escrita de mim, como um ricochete de uma bala perdida: antes isso que sangrar até à morte um pouco e tinta vermelha para o papel. Ou seja, quando começara escrever a vermelho é porque a minha morte se aproxima. Mas não nos conseguimos afastar assim tanto daquilo que fazemos, pois não? Porque continua a ser a visão do mundo através dos nossos olhos, do nosso filtro. De nós. Mas é a visão do mundo, não é a visão da nossa vida e aí acaba-se com a catarse, dá-se-lhe um tiro – pum! – e fica o assunto resolvido porque não fez ricochete.
Porque é que a escrita é uma coisa tão boa, deliciosa e saborosa, calmante e pacificante e não nervosa como uma debutante no dia da sua estreia. Puta! A debutante, não a escrita. Quando calha.
Mas a escrita é boazinha, a escrita é mesmo boa. A escrita facilita o ser porque obriga a pensar à velocidade de mão. Velocidade, rapidez, lentidão, velocidade pessoal e matemática existencial, memória, esquecimento, inversamente proporcionais, bacanais, rituais, fetiches = feitiços, e esta?
A escrita faz com que o pensamento não fuja a uma velocidade estonteante, permite-nos saborear as palavras que acorrem ao pensamento e nos socorrem da mais certa morte intelectual, carnal e visceral. E naturalmente, sentimental.