O sublime
Há uns meses atrás li num blogue a história de uma rapariga, que aliás era a própria escritora do blogue, que nesse dia que tinha ficado sem baterias no discman e que tinha podido ouvir o rebuliço da Rua Augusta. Lembro-me de na altura conseguir imaginar todo o barulho, as misturas das várias línguas, os músicos e os pedintes, os mendigos adormecidos – porque dormir é meio sustento, já dizia o meu avô. Na altura achei a sua argumentação a melhor e insurgi-me contra os walkman, discman, mini-disk, ipod, leitores de mp3 em geral. Porquê ouvir música quando o barulho da rua é tão bom, nos faz sentir tão cheios?
Teve que passar algum tempo para melhor poder reflectir sobre isso. Regressado da minha ida a NY dei por mim a pensar quase o oposto. As brigas infantis das pessoas os empurrões na rua como se fosse uma batalha, a mesquinhez das pessoas. Decidi que ia continuar a ouvir a música que queria: ficavam os banhos de música da multidão para quando ficasse sem bateria. Ainda por cima porque no autocarro em que eu ia, três raparigas desfaziam uma quarta que não estava presente, dois rapazes contavam um ao outro as suas experiências sexuais, um quarentão roçava-se numa vintona e eu preferi ouvir Debussy. E antes de carregar play, alguém fez um comentário sobre as minhas calças rotas.
Vi um morto pela primeira vez, Domingo passado. Descia a Rua da Misericórdia a pé e olhei para um beco onde já estava a polícia, algumas pessoas e um morto no chão. Impressionou-me porque estava habituado a ver cadáveres sangrentos na televisão, braços e cabeças a voar, sangue que daria para acabar com os dadores. Mas aquele corpo, imóvel e sem vida, completamente frio. Porque o frio se espalhava do corpo para o chão, para as paredes do beco e para as pessoas que por ali passavam. A polícia tiritava de frio e de passagem nos meus olhos ficou a imagem do homem morto, esticado no chão, sem possibilidade de movimento. A força da gravidade a única a actuar sobre os músculos parados.
Desci para o Chiado e quase a chegar ao Largo Camões uma ambulância de subia com a dolência de um Domingo de calor.
Ele pegou-lhe na mão e beijou-a numa carícia. Ela riu-se disse audivelmente, Je t’aime. Era um casal de franceses que passeava no Bairro Alto. Já tinham rugas na cara, daquelas de expressão, que mostram uma vida de felicidade. Passeavam e namoravam nas ruas vazias com as portas fechadas e os estores descidos por causa do calor.
Aquele gesto de amor foi tão sublime que o frio que se tinha apoderado de mim quando vi o morto desapareceu. Ficou o calor do amor dos outros. E do meu amor.