Fantástica Gramática Automática
Tuesday, May 30, 2006
  O sublime
Há uns meses atrás li num blogue a história de uma rapariga, que aliás era a própria escritora do blogue, que nesse dia que tinha ficado sem baterias no discman e que tinha podido ouvir o rebuliço da Rua Augusta. Lembro-me de na altura conseguir imaginar todo o barulho, as misturas das várias línguas, os músicos e os pedintes, os mendigos adormecidos – porque dormir é meio sustento, já dizia o meu avô. Na altura achei a sua argumentação a melhor e insurgi-me contra os walkman, discman, mini-disk, ipod, leitores de mp3 em geral. Porquê ouvir música quando o barulho da rua é tão bom, nos faz sentir tão cheios?
Teve que passar algum tempo para melhor poder reflectir sobre isso. Regressado da minha ida a NY dei por mim a pensar quase o oposto. As brigas infantis das pessoas os empurrões na rua como se fosse uma batalha, a mesquinhez das pessoas. Decidi que ia continuar a ouvir a música que queria: ficavam os banhos de música da multidão para quando ficasse sem bateria. Ainda por cima porque no autocarro em que eu ia, três raparigas desfaziam uma quarta que não estava presente, dois rapazes contavam um ao outro as suas experiências sexuais, um quarentão roçava-se numa vintona e eu preferi ouvir Debussy. E antes de carregar play, alguém fez um comentário sobre as minhas calças rotas.

Vi um morto pela primeira vez, Domingo passado. Descia a Rua da Misericórdia a pé e olhei para um beco onde já estava a polícia, algumas pessoas e um morto no chão. Impressionou-me porque estava habituado a ver cadáveres sangrentos na televisão, braços e cabeças a voar, sangue que daria para acabar com os dadores. Mas aquele corpo, imóvel e sem vida, completamente frio. Porque o frio se espalhava do corpo para o chão, para as paredes do beco e para as pessoas que por ali passavam. A polícia tiritava de frio e de passagem nos meus olhos ficou a imagem do homem morto, esticado no chão, sem possibilidade de movimento. A força da gravidade a única a actuar sobre os músculos parados.
Desci para o Chiado e quase a chegar ao Largo Camões uma ambulância de subia com a dolência de um Domingo de calor.

Ele pegou-lhe na mão e beijou-a numa carícia. Ela riu-se disse audivelmente, Je t’aime. Era um casal de franceses que passeava no Bairro Alto. Já tinham rugas na cara, daquelas de expressão, que mostram uma vida de felicidade. Passeavam e namoravam nas ruas vazias com as portas fechadas e os estores descidos por causa do calor.
Aquele gesto de amor foi tão sublime que o frio que se tinha apoderado de mim quando vi o morto desapareceu. Ficou o calor do amor dos outros. E do meu amor.
 
Comments:
Continuo a achar o amor a droga mais poderosa. Sempre!
 
Gostei de ler.
 
Sempre achei, que os não-portugueses oriundos da europa central, possuíam uma beleza, frescura, leveza que me provocam uma terrível inveja. Nós, portugueses, parece que vivemos num mundo cinzento, vestimos sempre de escuros, não usamos cortes de cabelo que nos libertem, andamos sempre sizudos, e em vez de nos preocuparmos em fazer da nossa vida mais feliz, só nos preocupamos em enganar os outros com a nossa suposta felicidade, e em denegrir e enterrar a vida dos outros.

:( Imagina eu que vivo numa vila de 6000 habitantes no Alentejo, em que toda a gente sabem quem é quem, que idade tem, que família tem, que profissão tem, que namorados tem, e de preferência, que loucuras cometeu!!!!
 
o amor é sem dúvida o mais sublime...
 
Em resposta ao teu comentário no meu blog: sabias que o "Adeus Princesa" foi escrito em Aljustrel, com base na realidade da vila daquela altura? Um escandalo... eheheh
 
já muitas vezes pensei em arranjar um ipod. mas eu ainda sou da estirpe que prefere ouvir as ruas e as pessoas e as desgraças e os risinhos histéricos, porque se repararmos, essa é outra forma de alinhar nesta alienação humana constante que eu tanto desprezo.

ultimamente tenho pensado numa coisa: as pessoas deixam de ter tempo e paciência e disponibilidade para os outros, eu pergunto: ondem é que elas pensam que vão só por viverem à pressa?

acho isto interessante. assim como as tuas teorias observacionais. :)
 
De repente, já em casa a matar a nostalgia da ausência de uma cidade que vai sendo mais ou menos nossa, conforme as, faltas ou demasias
 
... muito interessante este teu post, onde os sons da cidade, a morte e o amor (sublime) se cruzam numa teia... de vida.

Achei também muito curioso o comment-desabafo de Olinda (que se revela uma boa observadora dos hábitos ancestrais da lusitanidade)face ao teu texto. É assim que eu entendo a blogsfera; com este diálogo possível e disponível.
 
3 dias sem internet... Bolas, que saudades de te ler.
Sabe sempre bem ler as ruas de Lisboa pelos teus olhos.
 
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