"Pronomes" e pormenores
- Carlinhos, me faz um favor?
- Claro.
- Quando a gente estiver com a turma…
- O quê?
- Não fala certo de mais.
- O quê?
- É que a turma repara. Os pronomes, por exemplo. Você sempre coloca no lugar certo. Fica esquisito.
- Os pronomes? Não posso usá-los correctamente?
- Está vendo? Usar eles. Usar eles!
Carlinhos ficou tão confuso que, junto com a turma, não falou nem certo nem errado. Não falou nada. Até comentaram:
- Ó Carol, teu namorado é mudo?
Ele ia dizer «Não, é que, falando, fatalmente sentir-me ia vexado», mas se conteve a tempo. Depois, quando estavam sozinhos, a Carolina agradeceu, com aquela voz que ele gostava.
- Comigo você pode botar os pronomes onde quiser, Carlinhos.
Aquela voz de cobertura de caramelo. *
Hoje viajei muitos quilómetros de carro; o calor, as janelas abertas o disco que tocava a relembrar-me um concerto de há um dia e meio atrás. As canções que me lembravam um começo. Sentia os pelos do braço a queimar, o sol que activava a melanina na pele e os olhos fechados pela imensidão da claridade.
Não que fossem assim tantos quilómetros, simplesmente a viagem foi feita devagar. Saboreava a paisagem a música instalada na minha cabeça. Reli mentalmente o pedaço de crónica que tinha lido menos de vinte e quatro horas antes. Ri-me porque já me encontrei na mesma situação, porque tenho o mau hábito de corrigir os erros dos outros Mau? Bom? E o mesmo quando me disseram que eu rebaixava os outros quando usava palavras difíceis: mas se eu sempre usei palavras menos comuns e só tinha usado hedonista.
Foi só por isso e pela viagem e pela música e pelo vento quente e cálido que passou por mim a tarde inteira que tinha o sabor de um sopro ao ouvido. E com a melanina e o cansaço, o corpo pede-me descanso.
* Luís Fernando Veríssimo in Actual [08.04.2006]