Chá de rua
A rua cheira a folhas de chá. De que chá? Do chá normal. Cheira a folhas de chá que deixaram de ser quebradiças e que agora estão moles e se colam às colheres. Choveu. A chuva foi a água a ferver que o mundo aqueceu na chaleira. A rua cheira a folhas de chá, as plantas mais comuns deitam cheiro, as mais raras recolhem-se na sua vergonha, exalando um cheiro de suor floral. Também cheirava a terra molhada. A chá de raízes e folhas e terra molhada.
Antes de sair à rua estava na janela. Olhava e deixava que uma goteira grande passasse gotas entre os meus olhos e os meus óculos. Era fresca a água. Cheguei-me um pouco ao lado. Fiquei a ouvi a mesma goteira a cair no chão de cimento. Um pouco mais à frente há uma horta. À chuva, de impermeável, uma senhora poda as plantas com uma tesoura do peixe. Nem olha, corta a eito. Espreita pelo rabo do olho quem do prédio está a espreitar à janela. As plantas não se importam. Corta as flores da roseira e deixa a planta ficar verde, unicolor. Debaixo do impermeável está vestida com uma bata e pensa que tem que ir para casa preparar o almoço para o homem, penso eu.
Agarro no guarda-chuva e saio. Instantaneamente pára de chover.
As ruas estão vazias e não chove. Não sei como levar o guarda-chuva. Passa de uma mão para a outra e não me serve de bengala. As ruas de Lisboa estão vazias. Os centros comerciais estão cheios e as pessoas não usam os guarda-chuvas e sabem o que lhes fazer porque os não trouxeram. Têm um ar feliz no ambiente quente: o ar está demasiado respirado.
Ando, passo atrás de passo à frente de passo, ando. Outra vez: ando, passo atrás de passo à frente de passo, ando. E mais: ando, passo atrás de passo à frente de passo, ando.
Um riso começa a crescer lá ao longe. Um riso cambaleante, como o corpo, titubeante.
O riso é acompanhado por um sorriso desdentado e podre. E uma garrafa de vinho parece que pode escorregar da mão a qualquer momento. Olha para todas as pessoas que estão paradas e bebe mais vinho. Não anda, arrasta-se e arrasta a sua fraqueza como se de força se tratasse. Não há quem aguente tão trágico destino. Ninguém sabe que destino foi esse. Mas foi trágico. Direito a luto breu e rosas negras. E a uma garrafa verde de vinho tinto, sorriso desdentado, pedinte de cigarros e desmaio no meio da rua, nas poças de águas nas irregularidades do alcatrão.