O melhor momento do dia
Há aquele momento do dia. O dia parece ser limitado pelas horas dos relógios, pelas duas voltas que o ponteiro das horas tem que dar, pelas duas vezes que tem que passar pela casa dos uns, dos dois, dos três, dos quatros, dos cincos, dos seis, dos setes, dos oitos, dos noves, dos dez, dos onzes e dos dozes e temos um dia de vinte e quatro horas em que se multiplicou doze por dois.
É de noite. Às vezes é mais de noite do que noutras vezes: são vezes. Já não está calor, mas sabe bem ter a janela aberta, o cheiro da padaria na cave do meu prédio que me faz correr à cozinha e comer qualquer coisa. Mas é de noite. Faz-se silêncio na casa porque há pessoas que dormem. E as que ainda não dormem preparam-se para dormir, por isso é preciso não fazer barulho. Nem sequer os pés descalços podem andar rápido, fazem barulho quando se descolam dos tacos de madeira encerada. Fecho a porta do quarto.
Falamos minutos e horas, às vezes segundos mas não interessa. Falamos, estamos cansados, calejados. Mas falamos, ouvimos a nossa voz. Rimos e brigamos. Zangamo-nos e reconciliamo-nos. Prometemos tantas coisas que faremos quando estivermos juntos: umas faremos, outras não. Fazemos pirraças e rimos. Desejamos boas noites com muitas saudades e vamos dormir.
Menti-te. Depois não vou logo dormir. Achego-me à varanda, enrolo e acendo um cigarro clandestino. Há já muito que deixei de fumar. Mas ninguém me vê. Sento-me no chão e olho para o céu. Ontem vi duas estrelas, já sabia que hoje o dia ia estar assim-assim.
E saboreio-te, como se ali estivesses, como se estivéssemos os dois a partilhar esse cigarro clandestino das pessoas a quem dissemos que há muito que deixámos de fumar. E nessa altura já passou o melhor momento do dia, aquele em que falámos por segundos, minutos, horas. Não interessa. Tivemo-nos.