Partilhas e partidas
Da varanda da minha casa vi um miúdo a cair de bicicleta. Ri-me. A mamã disse-me que não nos devemos rir das desgraças dos outros, mas eu nem sempre fiz caso do que a mamã dizia. Também dizia, como acrescento a não rir das desgraças alheias, que se o fizéssemos provavelmente alguém se riria das nossas. Certo é que me ri e ainda o riso não tinha terminado já o miúdo estava de novo em cima da bicicleta a pedalar e tentar a proeza que o tinha deitado ao chão. Um braço esfolado e um joelho a sangrar. Isso depois cura-se em casa.
O J. disse-me, lembras-te quando caíamos assim e nos levantávamos logo de seguida. Igualzinho. E depois contou-me que há dias o irmão mais novo lhe apareceu em casa todo esfolado de umas voltas de bicicleta no largo ou na quinta, não sei onde se passou a acção. Falámos de quedas de bicicleta e proezas conseguidas e não conseguidas. Falámos de quedas e feridas, curativos e passeios. Acho que estávamos a falar da nossa vida, da sua totalidade até agora. Planos falhados, surpresas e tiros no escuro que acertaram em cheio e outros que nem sequer se aproximaram do alvo. Em momentos de menos de um minuto, resumimos a nossa vida um ao outro. Usando bicicletas, quedas, feridas, passeios e o irmão dele. E agora, passadas algumas horas dessa conversa, divido-a na vida, minha e dele. E nossa, como amigos de infância.
Apetece-me fumar um cigarro ao computador mas não me apetece que o cheiro se esconda no armário nem a cinza caia para cima do teclado. Nunca tive muitos ares de escritor de cigarro ao canto da boca: o fumo entra-me nos olhos e faz-me chorar, impede-me de escrever. Prefiro fazer uma pausa e ir à varanda. Porque não gosto de os ver esvair-se em fumo no cinzeiro que não tenho. De mais a mais, os cigarros de enrolar estão sempre a apagar-se, tinha que estar sempre de isqueiro em riste; e ainda tinha que os enrolar, essa é outra. Tanta confusão desconcentra-me e impede-me de escrever.
Em Londres, em Fevereiro, uma rapariga que já tinha ouvido falar de mim disse-me: pensava que tu eras muito calado e fumavas imenso, é assim que acho que são os escritores. Ri-me imenso e expliquei que não era escritor, era apenas pretensioso. Expliquei também que naquele dia estava especialmente falador. Em inglês, claro.
Acho que a mamã não vai gostar de ler que ando a fumar outra vez.
Nunca tinha escrito sobre a minha mãe referindo-me a ela como mamã. Rio-me ao escrever isto, porque me lembro sempre do vizinho do lado da minha tia que é só maluco e anormal – nas palavras da minha irmã e por oposição a uma qualquer doença mental que eu julgava que tinha. Tem quarenta anos, vive com os pais e quando se zanga diz, Foda-se mamã, foda-se! É por isso que eu me rio.
Voltei a escrever sobre o acto de escrever em mim. Recorro aos mesmos motivos, ao dia, ao autocarro, às pessoas com que me cruzo, às que conheço e às que ainda vou conhecer: porque só pelo facto de as imaginar começam já a existir para mim.
Vejo a minha escrita. Tem que ser melhor: olho para a minha escrita. Mais fundo: observo a minha escrita. Mais ainda: auto-analiso-me através da minha escrita. Nada de mau e nada de bom. Um pouco vazio, talvez. Mas a pretensão permanece.
Agora que está quase, vou só à varanda fazer aquela pausa.