Rádio
Ainda estou a pensar no título. Sei tudo o que vem a seguir porque estou a escrever, estive a escrever. Sei, pelo menos, o fio condutor com que quero ligar as palavras. Outros títulos que me ocorreram seriam igualmente pertinentes. Mas decidi-me por este, simplesmente porque foi o primeiro em que pensei. Por ordem cronológica: partilha; auto-estrada.
Gosto que conduzir à noite. Gosto das luzes. Não há nada mais anónimo e solitário do que entrar em Lisboa, pela A1, ao princípio da noite, ao princípio do serão. À hora do início do cansaço. A ausência do barulho do rádio, os ouvidos a zumbir por horas e horas de barulho do motor, de rodas a carregar no alcatrão. E as rotações, mais altas, mais baixas, as ultrapassagens.
A estação de rádio que não se fixa num só ponto e vagueia no ar, nas ondas invisíveis que também nos atravessam o corpo. Não tinha pensado nisto quando comecei a escrever. A música do rádio atravessa o nosso corpo em ondas invisíveis. (Dá ainda mais validade ao título que escolhi.) Mas a antena não pára numa só música e desliza, esgueira-se para ali e aqui. O cansaço é tanto que mais fácil é desligar o rádio e esperar por Lisboa. E os ouvidos estão abertos e o cérebro fechado à cadência ruidosa das rodas sobre o alcatrão.
Os dedos soltam-se levemente do volante, já não há força. As mãos suam, mas o dia não estava quente. Por isso escorregam no volante. Caem no colo e voltam ao lugar. O carro não guina, não há ninguém na estrada, apenas umas luzes de presença bem lá longe. De janelas abertas está frio. De janelas fechadas está calor. O suor escorre pelo volante e pelos flancos. Não sei como esteve Lisboa, não estava lá para ver. Sei como estava à chegada de Sábado à noite: estava vazia de carros, fria de corpo e quente de espírito, insuportavelmente opressiva, como uma carga de chumbo em chuva.
No rádio que se liga começa a tocar uma canção familiar. Apenas uns toques de xilofone e ficamos em silêncio e damos as mãos. No Surprises, dos Radiohead. É ao mesmo tempo uma canção de adormecer e uma canção de tristeza. é uma canção das coisas de hoje: intoxicações de monóxido de carbono, empregos repetitivos, autómatos em centros comerciais, até o sorriso plastificado em botox. Não sei porque demos as mãos, mas soube-me bem dar as mãos a ouvir esta música. Precisava de sentir uma segurança de saber que não era assim. Que não estou intoxicado. Que não tenho emprego. Que nem sempre sorrio, mas quando o faço é genuinamente.
Senti um calor a subir quando dei as mãos. Um calor genuíno. Assim como o sorriso que esboçámos.
Nesse momento muitas pessoas anónimas partilharam connosco esse momento. Não o sabiam, mas estávamos todos ligados através da música que dura três minutos e quarenta e nove segundos. E nesse espaço de tempo, entrou em nós o espírito da vida moderna. Não, pós-moderna, que o modernismo já terminou.