Um: Etelvina e Thalia

A determinada altura do ‘Horácio’ de Heiner Müller, há a seguinte frase:
há muitos homens num só. Mas era uma mulher. E ia sentada à minha frente. Passei por ela e cheirava a rua, a caixotes do lixo e a debaixo de pontes. Tinha o cheiro dos pedintes e o ouro dos ladrões em brincos colares e pulseiras (
Etelvina era da rua como outros são do campo/sua cama era um caixote sem paredes nem tampo).
Tinha o nome dela ao pescoço, como um cão. Não me lembro. Não me lembro porque lhe dei um nome mal a vi. Chamava-se Etelvina e com seis meses já se punha de pé. Tinha sido deixada num cinema depois da matiné. Tinha um ar de homem. A cara barbada e duas saliências no peito indicavam que era fêmea, desfaziam o engano inicial, quase era andrógina, andrógino. Lembrei-me instantaneamente de uma cantora e compositora, Thalia Zedek. Tinha o ar gasto pela heroína e a flacidez gorda de quem já não consome tantas drogas. Eram tão parecidas. Era também a Etelvina do Sérgio Godinho.
Há muitos homens num só. Mas era uma mulher, apesar do aspecto masculino.
Trazia óculos de sol que lhe escondiam a cara e já muitos dentes lhe faltavam à frente. Na fronte, cicatrizes. Não sorria e tinha um ar duro. Como os duros da rua do cinema. Um gorro que lhe tapava o cabelo e saia em pequenas farripas pelos lados, pouco lavado, pouco cuidado. Uma camisa de flanela aos quadrados, demasiado grande. Não era feminina nem gostava de ser mulher. Queria ser homem e não ter que se preocupar com as regras. Há muitos homen num só, mas era uma mulher que queria ser homem e era Etelvina e era Thalia e era ladra e pedinte. Era tantas coisas e cabiam todas num corpo.
Ia sentada no autocarro, à minha frente, num banco individual e provocava todos com uma expressão de desafio. Queria que os olhos fossem doces, mas só os imaginava violentos atrás das lentes escuras. Há muitos homens num só. Mas era uma mulher quer não gostava de ser mulher e talvez ainda existisse esperança. Quando abriu a boca, articulou sons com a respiração e saíram palavras, falou como se cuspisse; mas para dar o lugar a uma senhora que vinha com sacos das compras. O bem e o mal. Olhou para mim com desprezo por cima das lentes escuras. Baixei o olhar envergonhado. Com medo.
Saltei na paragem seguinte a todas as paragens. Caminhei muito lentamente para casa a olhar por cima do ombro.