Fantástica Gramática Automática
Monday, July 03, 2006
  Um dia fora de casa
Hoje vi muitas pessoas. É o que acontece quando se sai de casa. Vêem-se pessoas. Estava encostado a uma parede. Passou por mim um rapaz, olhava para muitos lados e foi por um corredor. Voltou passado nem um minuto e foi na outra direcção, parecia perdido. Sinto-me assim tantas vezes, perdido.

No meio de uma conversa com desconhecidos dei por mim a dizer que não pertencia a grupos nenhuns. Crise de identidade, perguntaram. Provavelmente, desde que nasci. No entanto já não me esforço por pertencer a coisa nenhuma. Sou arrogante a esse ponto.
Mas às vezes gostava de pertencer.

O motivo mais recorrente da minha escrita é ela própria. Acabo sempre por reflectir sobre o processo criativo, especialmente sobre aquilo que já foi e não é. Dou imensas voltas e acabo sempre no mesmo lugar, na falta de criatividade a que sou sujeito. Talvez não seja a falta de criatividade, mas a falta de método que me impede de levar o processo que tanto defendo até ao fim. Tive uma ideia para um conto.
Começava,
Era uma vez um velho que era moço de estrebaria… E não passou disso. Já não quero esta ideia. Porque hei-de chegar a velho e ainda ser moço de estrebaria porque preferi dormir me cima da palha, no meio da merda, a fazer algo para mudar a minha vida. É por isso que já não quero a ideia, é-me demasiado íntima.
Porque me disperso no que se passa à minha volta, especialmente no tempo que vejo fazer através da minha janela e daquilo que vejo através dela. E a partir daí.
Mas hoje saí de casa e vi pessoas. Vi um rapaz que estava perdido e conversei com desconhecidos.

Um dos meus maiores medos é que descubram que eu estou perdido. Um dos meus maiores medos é que descubram que tenho medo. O rapaz que hoje observava enquanto fumava um cigarro encostado a uma parede ao lado de um cinzeiro tinha medo de estar a ser observado. Da mesma forma que eu tenho. Percebia-o nos seus gestos, na forma como tentava parecer seguro, na forma como depois voltou para trás de cabeça baixa, envergonhado e humilhado. Também a mim me aconteceu e acontece, por isso sabia que estava perdido. Não só no edifício. Nunca diria isto verbalmente, mas a escrita no blogue permite-me a dualidade da veracidade do discurso. E da mesma forma que eu o observei, tenho medo que alguém me tenha observado e me tenha registado. Como um moço de estrebaria que há-de chegar a velho como moço de estrebaria.

Duas horas depois de ter estado com os desconhecidos tive que regressar. Tinha-me esquecido do relógio. Disseram-me, tu não és normal. A melhor resposta teria sido, tu também não, mas não me apetecia entrar numa discussão da metafísica da normalidade. Sorri aos desconhecidos que possivelmente nunca mais verei e respondi que encarava isso como um elogio. Desprovido de arrogância e a transbordar de pretensão.
Depois disse boa noite e vim-me embora.
 
Comments:
Vodka e Valium 10 deve dar cá uma pedrada!
 
este texto podia ser meu.

eu tenho um bocado a mania da perseguição quando ando sozinha na rua, por outro lado gosto de encontrar alguém que pareça mais perdido que eu, para que possa observá-lo durante o tempo que me apetecer. às vezes meto-me medo. :|
 
talvez seja um eterno dilema: escrever acerca do que há dentro de casa ou fora dela?... metaforicamente falando. Parece que seja como for, acabamos sempre por falar de nós. A leitura da realidade é sempre uma construcção interna, uma narrativa única. o truque está talvez em delinear a fronteira do que queremos manter privado, o que é difícil à brava como bem dizes...
 
quem já não se sentiu perdido??
 
"Porque me disperso no que se passa à minha volta". É a prova mais evidente de que estás 'vivo' e atento a tudo o que se passa ao teu redor. É saudável deixarmo-nos perder no que mexe em torno de nós... e em nós.
 
Porque quando se sai à rua vociferamos mentalmente "Esta sou eu." ao mesmo tempo que há uma vozinha que murmura "Quem sou eu?". O problema é quando trocam o texto.
 
... como diria o outro: depende.
Embora escreva num registo informal, não deixo de testemunhar no blog (que é deste espaço que estamos agora a falar) acontecimentos passados comigo e com outras pessoas. Escrevo, naturalmente, sobre a minha experiência de vida. Impossível não escrever, pintar ou representar, sobre aquilo que não se conhece; até a ficção científica (p.e.) é sustentada no conhecimento das tecnologias do tempo presente. No miolo da escrita, ficciono o mais possível, que é aquilo a que se chama vulgarmente criatividade, dentro das minhas modestas possibilidades amadoras nesta área. A dispersão pode ser bem positiva se a conseguirmos organizar... digo eu, que sou um desorganizado do caraças.
 
Perco-me com alguma frequência, e gosto de o fazer, gostava de me perder mais vezes de mim, mas só o consigo quando ingiro uns vodkas a mais (sem valium, porque senão poderia correr o risco de não mais regressar!!!) mas quando me perco, perco-me dos olhares dos outros, fico transparente ao alheio e permaneço, perdida mas em contemplação de quem é opaco ao olhar
 
Muitas coisas:
Não fiques triste de andar perdido. Se não andasses perdido de vez em quando depois não tinhas o prazer de voltar a entrar nos carris, não é?

Pertencer a grupos? Tipo o quê? Se te inscreveres na natação já fazes parte de um grupo..? (eu sei, isto é totó). Olha, fazes parte do grupo dos que se sentem perdidos. E dos que para além disso o dizem em blogs.

Sei por experiência que as pessoas muito criativas também têm alguma tendência para serem desorientadas :) Tenho gavetinhas no meu quarto onde guardo recortes e papéis. A que diz "Projecto meus" deita por fora. Todos por completar.

E não te preocupes, toda a gente se perde naquele edifício (se for o que estou a pensar)... e ninguém mas ninguém naquele sítio tem autoridade para dizer que não és normal :)
Aquele sítio está cheio de personagens!
 
Pois eu adorei o que li.

(isso da normalidade não vem ao caso. Na realidade, conheço muitos escritores que não foram considerados normais. Olha, tenho um poema/vida de um poeta/dramaturgo lá )

E adorei porque pela primeira vez o que li (não foi assim tanto por a minha observação pode ser o mais errada possível ) senti a escrita solta.
 
Que trip interna e externa.
 
ainda bem que estás perdido.

desculpa o egoísmo mas vidas perfeitas não se escrevem e da minha parte prefiro que estejas perdido e que escrevas que que estejas bem e não escrevas. só te conheço pelo blog é só a continuidade do mesmo que me interessa.

havia alguem 'conhecido' que dizia algo do género... hei-de me lembrar quem.
 
... e depois, um dia, um rapaz com ar amedrontado e perdido aproximou-se de mim e eu disse-lhe que tinha medo e estava perdido. Ele olhou-me como quem não acredita e eu olhei-me e vi que afinal ele não estava nada perdido nem tinha medo, ou antes, estava perdido mas não tinha medo e nem sequer estava perdido apesar de não saber onde estava, e ele disse-me que conhecia o medo mas não reconhecia o medo em mim e também já não o reconhecia nele, porque o medo é um ser muito medroso e foge quando alguém afirma possui-lo, porque o poder dele está no segredo e na máscara. Então enrolámos um cigarro a princípio meio a medo e depois desenrolámos o cigarro já sem medo e sem medo fumámos a recordação do fumo que acendemos na recordação do medo. Depois sentámo-nos um degrau a comer cigarros de chocolate enrolados em pratas de diferentes cores. E alisámos as pratas.
 
Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]





<< Home
fgautomatica@gmail.com | 'é necessário ter o espírito aberto, mas não tão aberto que o cérebro caia'
2H 31 da Armada A Natureza do Mal A Origem das Espécies A Senhora Sócrates A Terceira Noite A Vida Breve Abrupto Albergue dos Danados Auto-Retrato Avatares de um Desejo B-Site Baghdad Burning BibliOdyssey Blogue Atlântico Borboletas na Barriga Chanatas Ciberescritas Cinco Dias CORPO VISÍVEL Corta-Fitas Da Literatura De Rerum Natura Devaneios Diário Divulgando Banda Desenhada Dualidade Ondulatória Corpuscular E Deus Criou A Mulher Estado Civil Estranho Amor French Kissin' Golpe de Estado Hipatia Ilustrações, Desenhos e Outras Coisas Insónia Irmão Lúcia Jardins de Vento JP Coutinho Kitschnet Kontratempos Maiúsculas Mas Certamente que Sim! Menina Limão Miniscente Mise en Abyme Miss Pearls O Cachimbo de Magritte O Insurgente O Mundo Perfeito O Regabofe Os Canhões de Navarone Pelas Alminhas Porosidade Etérea Portugal dos Pequeninos PostSecret Quatro Caminhos She Hangs Brightly Sorumbático Ter enos Vag s Terra de Ninguém Voz do Deserto Welcome to Elsinore Womenage a Trois
Blogtailors Cooperativa Literária Escritas Mutantes Exploding Dog Extratexto Mattias Inks Minguante mt design O Binóculo Russell's Teapot
A Causa Foi Modificada A Sexta Coluna Por Vocación Terapia Metatísica Tristes Tópicos
11/2005 - 12/2005 / 12/2005 - 01/2006 / 01/2006 - 02/2006 / 02/2006 - 03/2006 / 03/2006 - 04/2006 / 04/2006 - 05/2006 / 05/2006 - 06/2006 / 06/2006 - 07/2006 / 07/2006 - 08/2006 / 08/2006 - 09/2006 / 09/2006 - 10/2006 / 10/2006 - 11/2006 / 11/2006 - 12/2006 / 12/2006 - 01/2007 / 01/2007 - 02/2007 / 02/2007 - 03/2007 / 03/2007 - 04/2007 / 04/2007 - 05/2007 / 05/2007 - 06/2007 / 06/2007 - 07/2007 / 07/2007 - 08/2007 / 08/2007 - 09/2007 / 09/2007 - 10/2007 / 10/2007 - 11/2007 / 11/2007 - 12/2007 / 12/2007 - 01/2008 / 01/2008 - 02/2008 / 02/2008 - 03/2008 / 03/2008 - 04/2008 / 04/2008 - 05/2008 / 05/2008 - 06/2008 / 06/2008 - 07/2008 / 07/2008 - 08/2008 / 08/2008 - 09/2008 / 09/2008 - 10/2008 / 10/2008 - 11/2008 / 11/2008 - 12/2008 / 01/2009 - 02/2009 /