Um dia fora de casa
Hoje vi muitas pessoas. É o que acontece quando se sai de casa. Vêem-se pessoas. Estava encostado a uma parede. Passou por mim um rapaz, olhava para muitos lados e foi por um corredor. Voltou passado nem um minuto e foi na outra direcção, parecia perdido. Sinto-me assim tantas vezes, perdido.
No meio de uma conversa com desconhecidos dei por mim a dizer que não pertencia a grupos nenhuns. Crise de identidade, perguntaram. Provavelmente, desde que nasci. No entanto já não me esforço por pertencer a coisa nenhuma. Sou arrogante a esse ponto.
Mas às vezes gostava de pertencer.
O motivo mais recorrente da minha escrita é ela própria. Acabo sempre por reflectir sobre o processo criativo, especialmente sobre aquilo que já foi e não é. Dou imensas voltas e acabo sempre no mesmo lugar, na falta de criatividade a que sou sujeito. Talvez não seja a falta de criatividade, mas a falta de método que me impede de levar o processo que tanto defendo até ao fim. Tive uma ideia para um conto.
Começava,
Era uma vez um velho que era moço de estrebaria… E não passou disso. Já não quero esta ideia. Porque hei-de chegar a velho e ainda ser moço de estrebaria porque preferi dormir me cima da palha, no meio da merda, a fazer algo para mudar a minha vida. É por isso que já não quero a ideia, é-me demasiado íntima.
Porque me disperso no que se passa à minha volta, especialmente no tempo que vejo fazer através da minha janela e daquilo que vejo através dela. E a partir daí.
Mas hoje saí de casa e vi pessoas. Vi um rapaz que estava perdido e conversei com desconhecidos.
Um dos meus maiores medos é que descubram que eu estou perdido. Um dos meus maiores medos é que descubram que tenho medo. O rapaz que hoje observava enquanto fumava um cigarro encostado a uma parede ao lado de um cinzeiro tinha medo de estar a ser observado. Da mesma forma que eu tenho. Percebia-o nos seus gestos, na forma como tentava parecer seguro, na forma como depois voltou para trás de cabeça baixa, envergonhado e humilhado. Também a mim me aconteceu e acontece, por isso sabia que estava perdido. Não só no edifício. Nunca diria isto verbalmente, mas a escrita no blogue permite-me a dualidade da veracidade do discurso. E da mesma forma que eu o observei, tenho medo que alguém me tenha observado e me tenha registado. Como um moço de estrebaria que há-de chegar a velho como moço de estrebaria.
Duas horas depois de ter estado com os desconhecidos tive que regressar. Tinha-me esquecido do relógio. Disseram-me, tu não és normal. A melhor resposta teria sido, tu também não, mas não me apetecia entrar numa discussão da metafísica da normalidade. Sorri aos desconhecidos que possivelmente nunca mais verei e respondi que encarava isso como um elogio. Desprovido de arrogância e a transbordar de pretensão.
Depois disse boa noite e vim-me embora.