Fantástica Gramática Automática
Monday, July 10, 2006
  Velhos conhecidos
Round and round, up and down/Through the streets of your town
O pretexto foi a visita ao papá e à mamã e um parafuso espetado na roda de trás do lado esquerdo do carro. Ou seja, durante a semana tinha estado frio e eu tinha decidido voltar a tirar as mantas quentes. E no dia em que tenho que fazer a viagem de quase três horas no meu carro preto fica um calor abrasivo que me faz beber um litro e meio de água em três horas de viagem. Fui de Lisboa a Portalegre.
Chegado a casa dos papás fui levar a mamã a passear e furei uma roda, tal foi que passei o fim-de-semana a andar a pé. Não é mau, estava um calor bom de noite. Agora é que entra o tal verso,
Round and round, up and down/Through the streets of your town
porque estava a fazer o caminho que costumava fazer quando ia para a escola, o caminho que fiz durante seis anos. E isso é bom para reflectir, como diz o Paul Theroux, Nothing induces concentration or inspires memory like an alien landscape or a foreign culture. It is simply not possible (as the romantics think) to lose yourself in an exotic place. E caminhei numa cidade que já não entendo como casa. Ou pelo menos como lar; uma perspectiva de estranhamento. A mesma diferença que a língua inglesa faz entre “house” e “home”. Não interessa, porque este regresso coincidiu com algo que me tinha acontecido no metro dois dias antes, ou um dia antes ou na semana anterior. Não interessa, partiu-me o coração.

Ia no metro, a cabeça perdida, a música nos ouvidos a antecipar uma tarde na biblioteca. Saímos na mesma estação e não me tinha visto. Eu não tinha a certeza. Dos tempos de Portalegre, ele que em tempos tinha sido o meu melhor amigo. Abeirei-me e disse olá; não pareceu surpreendido por me ver, dissemos umas palavras de ocasião, eu fui pesquisar sobre fotografia e ekphrasis e ele foi fazer um exame de qualquer coisa relacionada com farmácia.
Que nos apartou tanto?
Somos e fomos em opostos, mas isso nunca teve influência em nada. Vi ali alguém em quem confiei muitas coisas a olhar-me de cima – quanto custa esse olhar de desprezo – e a desdenhar daquilo que eu faço. De melhores amigos passámos a conhecidos de ocasião e mentimos nas festas de família. Às vezes detesto-o, outras vezes tenho pena dele, porque sei que não é feliz. Acabámos em pólos opostos em quase tudo: academicamente, pessoalmente, emocionalmente. E muitas mais palavras terminadas em –mente.

Agasta-se-me o coração que quer sair de mim, dizia a Ama do “Auto da Índia”. A mim também. Recordo do que me disseram, ‘Não podes estar de bem com todas as pessoas do mundo nem esperar que todas gostem de ti’. Se calhar o mal é esse mesmo, não ter que ter a necessidade de estar bem com todos. Se estiver bem comigo – que lugar-comum mais foleiro, mas agora não me lembro de outra expressão – o resto vem por acréscimo.
Felizmente tive os passeios em Portalegre que me proporcionaram espaço mental para reflectir. Gostava que o Filipe lesse isto. Talvez ficasse com alguma ideia daquilo que lhe quero dizer e ele nunca quererá ouvir.


Verso inicial de Streets Of Your Town, The Go-Betweens.
 
Comments:
Tenho a mania de só estar bem comigo quando os outros gostam de mim. À vezes corre tão mal!
 
Vodka, não fazia ideia nenhuma de que temos o ponto de origem em comum. Para além disso, revi-me nas tuas palavras.
 
... as velhas amizades podem não ser as actuais. Sobretudo quando os percursos de vida foram completamente opostos e nesse meio-tempo não houve diálogo ou... discussão sobre comportamentos.
Nada melhor que o contacto continuado pelo menos até aos... trinta anos, digamos. Normalmente, por essa altura, já se tomaram posições pessoais, que o primeiro emprego, o viver em comum com outra pessoa, os filhos, a opção partidária, definiram o tal comportamento. Se deixamos de ver um amigo depois de acabados os estudos e o encontramos dez anos depois, é bem possível sermos surpreendidos...
 
"... sermos surpreendidos"; que coisa feia.
"... ficarmos surpreendidos... ".
 
é, eu acho que todos temos pelo menos uma estória muito, muito parecida. é cruel. fica-se a pensar porquê, se podíamos tão bem continuar a gostar de nos ver. é duro. mas isso só me diz uma coisa: pequenez.

invejas, superioridades, assuntos latentes ou pura e simplesmente, espírito fraco. detesto essas pesssoas que mais parece que me usam e me descartam, quando eu continua a gostar delas, tanto, tanto.

desculpa, este assunto transtorna-me desmesuradamente.
 
É precisamente desses sentimentos que é feita a natureza dos apátridas, aqueles que não sabem a que lar regressar porque já não sabem a qual pertencem...
 
jà pensas-te que a frieza e arrogância sao mecanismos de defesa bem conhecidos...mas este texto é bom sinal, pelo menos de mudança :)
 
...como esta história é comum e triste...
 
Pois... Aconteceu-me o mesmo há cerca de um mês... a minha melhor amiga... encontrei-a com o marido e a filha.. não a via há?... hum... não sei. Ela tirou mestrado, eu não. Ela é professora numa faculdade, eu não. (será por isso?) Não sei. Deu-me o número do telemóvel e disse-me : se precisares de apoio jurídico.

(apoio jurídico? Da minha ex-melhor amiga?)

deitei o papel fora.
 
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