Velhos conhecidos
Round and round, up and down/Through the streets of your town
O pretexto foi a visita ao papá e à mamã e um parafuso espetado na roda de trás do lado esquerdo do carro. Ou seja, durante a semana tinha estado frio e eu tinha decidido voltar a tirar as mantas quentes. E no dia em que tenho que fazer a viagem de quase três horas no meu carro preto fica um calor abrasivo que me faz beber um litro e meio de água em três horas de viagem. Fui de Lisboa a Portalegre.
Chegado a casa dos papás fui levar a mamã a passear e furei uma roda, tal foi que passei o fim-de-semana a andar a pé. Não é mau, estava um calor bom de noite. Agora é que entra o tal verso,
Round and round, up and down/Through the streets of your town
porque estava a fazer o caminho que costumava fazer quando ia para a escola, o caminho que fiz durante seis anos. E isso é bom para reflectir, como diz o Paul Theroux, Nothing induces concentration or inspires memory like an alien landscape or a foreign culture. It is simply not possible (as the romantics think) to lose yourself in an exotic place. E caminhei numa cidade que já não entendo como casa. Ou pelo menos como lar; uma perspectiva de estranhamento. A mesma diferença que a língua inglesa faz entre “house” e “home”. Não interessa, porque este regresso coincidiu com algo que me tinha acontecido no metro dois dias antes, ou um dia antes ou na semana anterior. Não interessa, partiu-me o coração.
Ia no metro, a cabeça perdida, a música nos ouvidos a antecipar uma tarde na biblioteca. Saímos na mesma estação e não me tinha visto. Eu não tinha a certeza. Dos tempos de Portalegre, ele que em tempos tinha sido o meu melhor amigo. Abeirei-me e disse olá; não pareceu surpreendido por me ver, dissemos umas palavras de ocasião, eu fui pesquisar sobre fotografia e ekphrasis e ele foi fazer um exame de qualquer coisa relacionada com farmácia.
Que nos apartou tanto?
Somos e fomos em opostos, mas isso nunca teve influência em nada. Vi ali alguém em quem confiei muitas coisas a olhar-me de cima – quanto custa esse olhar de desprezo – e a desdenhar daquilo que eu faço. De melhores amigos passámos a conhecidos de ocasião e mentimos nas festas de família. Às vezes detesto-o, outras vezes tenho pena dele, porque sei que não é feliz. Acabámos em pólos opostos em quase tudo: academicamente, pessoalmente, emocionalmente. E muitas mais palavras terminadas em –mente.
Agasta-se-me o coração que quer sair de mim, dizia a Ama do “Auto da Índia”. A mim também. Recordo do que me disseram, ‘Não podes estar de bem com todas as pessoas do mundo nem esperar que todas gostem de ti’. Se calhar o mal é esse mesmo, não ter que ter a necessidade de estar bem com todos. Se estiver bem comigo – que lugar-comum mais foleiro, mas agora não me lembro de outra expressão – o resto vem por acréscimo.
Felizmente tive os passeios em Portalegre que me proporcionaram espaço mental para reflectir. Gostava que o Filipe lesse isto. Talvez ficasse com alguma ideia daquilo que lhe quero dizer e ele nunca quererá ouvir.
Verso inicial de Streets Of Your Town, The Go-Betweens.