Anatomia
Às vezes acho que os meus ouvidos também são os meus pulmões.
Uma vez questionei as minhas mãos. Na altura não procurava saber se eram bonitas ou feias, não me interessavam os juízos de valor. Olhava para elas, para os cinco dedos que compõem cada mão. Porque é que as mãos se chamam mãos? Foi aleatório, arbitrário, causal, casual? Saussurre e Peirce podiam responder bem melhor que eu. Penso que penso e volto a pensar.
As mãos são um caule com cinco raízes que têm uma capacidade de movimento bastante interessante. Quando pensei isto já não estava na descoberta da minha própria motricidade, se assim fosse não teria tido capacidade de abstracção. Na altura também não me lembrei de Saussurre e Peirce, isso é de agora, um acrescento que fiz.
Hoje vi-te na rua...
Hoje vi-te na rua. Sabia que não eras tu, que não estavas na rua. Mas vi-te na mesma. Não te conhecia o vestido. Era todo azul com bolas brancas, atava na cintura. Só que não eras tu porque eras um pouquinho maior. Mais alta, mais larga, não muito. Mas continuavas a ter a mesma harmonia. Andavas e as ancas rebolavam, rebolavam. Ninguém olhava para ti a não ser eu. Ainda bem, acho que tinha ficado com ciúmes só de olharem para ti. E como ninguém te quisesse, passavas a transbordar sensualidade e calor na manhã fresca. E ninguém se importava, ninguém olhava, tinha-te só para mim. Continuei atrás de ti, fascinado pelo movimento das tuas ancas, que rebolavam, rebolavam.
Olhei para os teus pés: calçavas as sabrinas prateadas que compraste nos saldos. Sempre pensei que tivesse sido apenas um ímpeto por estarem tão baratas na loja. Acabaste por usá-las e fiz bem em estar calado na altura: rir-te-ias de mim agora ao mesmo tempo que inventavas um jogo qualquer para eu perder. Fazíamos mais uma combinação e falávamos da vida que ainda iríamos ter.
Passaste pelo meio do jardim: eu ia atrás de ti, passei ao teu lado e depois fui à tua frente. Não me viste. Porque não era tu.