Especiais
Uma vez, quando tinha catorze anos disse a uma pessoa amiga,
“Há pessoas que são especiais e outras que não, que não interessam para nada. Nós os dois somos especiais”
e continuei numa grande dissertação sobre o destino como entidade reguladora com sentido de humor e com afinidades muito grandes com a lei de Murphy; e isto envolvia uma bola de vólei e um cesto de basquete, uma vez à noite no pátio da escola. Ela ria-se de mim e do meu entusiasmo: estávamos apaixonados. Fomo-nos apaixonando ao longo dos anos e esse amor aos meus catorze anos era tão romântico como um romance do Júlio Dinis. Muito, muito dramático. Muito, muito romântico. Ela ria-se de mim e de eu achar que éramos especiais, ria-se da situação. Ela sempre se riu de mim. Se nos tivéssemos envolvido teria sido como o livro O Paciente Inglês, em que ela lhe batia, mordia e arrancava cabelos.
Lembro-me também de ter nomeado mais umas quantas pessoas que considerava serem especiais. Acho que o critério principal era conhecerem-ME. De facto, a única pessoa especial era eu. Os que não eram especiais eram os tais fracos que a história nunca conta. Queria ser especial porque a mediania me assusta. A própria palavra está muito próxima de mediocridade.
Os anos passaram e intermitentemente essa rapariga e eu fomo-nos encontrando. Passaram, entretanto, quase dez anos desde que isso aconteceu. (Uma coisa é certa, já não sou especial – e o já está a mais porque nunca fui. Talvez seja para os meus pais, como as minhas irmãs são, mas eles não contam. Eles iam gostar sempre de nós.)
Então dez anos e muitas intermitências depois, recordo essa noite. E recordo também algo que me aconteceu, sete meses depois dessa noite. Ensinaram-me que todos somos especiais e únicos. E somos. Nem que seja porque não há dois seres humanos iguais. Não há nada igual. Isso faz com que todas as pessoas sejam especiais.
Se me tivessem dito isto aos catorze anos eu teria anuído, mas teria respondido que as pessoas especiais são aquelas que estão destinadas a algo. Aquilo que uma pessoa atinge e alcança depende unicamente do esforço empreendido. Há uma espécie de relação directamente proporcional entre o esforço sincero e aquilo que se alcança.
Só acredito que sou especial em circunstâncias igualmente especiais. Quando entro num avião, no metro em Londres, Paris ou Nova Iorque, olho para as pessoas à minha volta e penso que hoje não é o dia destas pessoas morrerem. E eu entre elas. E sossego o espírito.
(E contrariamente a tudo o que acima escrevi, há pessoas que são mesmo especiais. Não só são especiais para nós como também são especiais universalmente.)